Por Machado de Assis (1864)
Sobre a mesa em que Meneses costumava trabalhar não havia papel. Devia haver na gaveta, mas a chave estava seguramente com ele. Ia saindo para ir ver papel a outra parte, quando viu junto da porta uma chave; era a da gaveta. Sem escrúpulo algum, travou da chave, abriu a gaveta e tirou um caderno de papel. Escreveu algumas linhas em uma folha, e deixou a folha sobre a mesa debaixo de um pequeno globo de bronze. Guardou o resto do papel, e ia fechar a gaveta, quando reparou em duas cartinhas que, entre outras muitas se distinguiam por um sobrescrito de letra trêmula e irregular, de caráter puramente feminino.
Olhou para a porta a ver se alguém espreitava a sua curiosidade e abriu as cartinhas, que, aliás, já se achavam descoladas. A primeira carta dizia assim:
Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Lúcia contou-me tudo. Adeus, esquece-te de mim. — MARGARIDA.
A segunda carta era concebida nestes termos:
Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Margarida contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — LÚCIA.
Como o leitor adivinha, estas cartas eram as duas que Meneses recebera na tarde em que andou passeando com Cristiana no jardim.
Eulália, lendo estas duas cartas, quase teve uma síncope. Pôde conter-se, e, aproveitando o carro que a esperava, foi buscar a Cristiana as consolações da amizade e os conselhos da prudência.
Entrando em casa de Cristiana pôde ouvir as últimas palavras do diálogo entre esta e Meneses. Esta nova traição de seu marido quebrara-lhe a alma.
O resto desta simples história conta-se em duas palavras.
Cristiana conseguira acalmar o espírito de Eulália e inspirar-lhe sentimentos de perdão. Entretanto, contou-lhe tudo o que ocorrera entre ela e Meneses, no presente e no passado.
Eulália mostrou ao princípio grandes desejos de separar-se de seu marido e ir viver com Cristiana; mas os conselhos desta, que, entre as razões de decoro que apresentou para que Eulália não tornasse pública a história das suas desgraças domésticas, alegou a existência de uma filha do casal, que cumpria educar e proteger, esses conselhos desviaram o espírito de Eulália dos seus primeiros projetos e fizeram-na resignada ao suplício.
Nogueira quase nada soube das ocorrências que acabo de narrar; mas soube quanto era suficiente para esfriar a amizade que sentia por Meneses.
Quanto a este, enfiado ao princípio com o desenlace das cousas, tomou de novo o ar descuidoso e aparentemente singelo com que tratava tudo. Depois de uma mal alinhavada explicação dada à mulher a respeito dos fatos que tão evidentemente o acusavam, começou de novo a tratá-la com as mesmas carícias e cuidados do tempo em que merecia a confiança de Eulália.
Nunca mais voltou ao casal Meneses a alegria franca e a plena satisfação dos primeiros dias. Os afagos de Meneses encontravam sua mulher fria e indiferente, e se alguma cousa mudava era o desprezo íntimo e crescente que Eulália votava a seu marido. A pobre mãe, viúva da pior viuvez desta vida, que é aquela que anula o casamento conservando o cônjuge, só vivia para sua filha.
Dizer como acabaram ou como vão acabando as cousas não entra no plano deste escrito: o desenlace ainda é mais vulgar que o corpo da ação.
Quanto ao que há de vulgar em tudo o que acabo de contar, sou eu o primeiro a reconhecê-lo. Mas que querem? Eu não pretendo senão esboçar quadros ou caracteres, conforme me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada mais.
Baixar texto completo (.txt)ASSIS, Machado de. Casada e Viúva. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, nov. 1864.