Por Machado de Assis (1865)
Antônia era até então o símbolo do amor e da felicidade conjugal. Que demônio lhe soprara ao ouvido tão negra resolução de iludir a confiança e o amor do marido? Uns duvidaram, outros se irritaram, alguns esfregaram as mãos de contentes, animados pela idéia de que o primeiro erro devia ser uma arma e um incentivo para os erros futuros. Desde que a notícia, contada à meia voz, e com a mais perfeita discrição, correu de boca em boca, todas as atenções voltaram-se para Antônia e Moura. Um olhar, um gesto, um suspiro, escapam aos mais dissimulados; os olhos mais experimentados viram logo a veracidade dos boatos; se os dois se não amavam, estavam perto do amor. Deve-se acrescentar que ao pé de Oliveira, Moura fazia o papel de deus Pã ao pé do deus Febo. Era uma figura vulgar, às vezes ridículo, sem nada que pudesse legitimar a paixão de uma mulher bela e altiva. Mas assim aconteceu, a grande aprazimento da sombra de La Bruyère.
Uma noite uma família da amizade de Oliveira foi convidá-la para irem ao Teatro Lírico. Antônia mostrou grande desejo de ir. Cantava então não sei que celebridade italiana. Oliveira, por doente ou por enfado, não quis ir. As instâncias da família que os convidara foram inúteis; Oliveira teimou em ficar.
Oliveira insistia em ficar, Antônia em ir. Depois de muito tempo o mais que se conseguiu foi que Antônia fosse em companhia das amigas, que a trariam depois para casa. Oliveira ficara em companhia de um amigo.
Mas, antes de saírem todos, Antônia insistiu de novo com o marido para que fosse. — Mas se eu não quero ir? dizia ele. Vai tu, eu ficarei, conversando com ***. — E que se tu não fores, disse Antônia o espetáculo não vale nada para mim. Anda! — Vai, querida, eu irei em outra ocasião.
— Pois não vou!
E sentou-se disposta a não ir ao teatro. As amigas exclamaram em coro: — Como é isso: não ir? Que maçada! Era o que faltava! anda, anda!
— Vai, sim, disse Oliveira. Então por que eu não vou, não te queres divertir? Antônia levantou-se:
— Está bem, disse ela, irei.
— De que número é o camarote? perguntou bruscamente Oliveira.
— Vinte, segunda ordem, disseram as amigas de Antônia.
Antônia empalideceu ligeiramente.
— Então, irás depois, não é? disse ela.
— Não, decididamente, não.
— Dize se vais.
— Não, fico, é decidido.
Saíram para o Teatro Lírico. Sob pretexto de que desejava ir ver a celebridade tomei o chapéu e fui ao Teatro Lirico.
Moura estava lá!
III
Carolina
Pois quê! vais casar-te?
— É verdade.
— Com o Mendonça?
— Com o Mendonça.
— Isso é impossível! Tu, Carolina, tu formosa e moça, mulher de um homem como aquele, sem nada que possa inspirar amor? Ama-o acaso?
— Hei de estimá-lo.
— Não o amas, já vejo.
— É meu dever. Que queres, Lúcia? Meu pai assim o quer, devo obedecer-lhe. Pobre pai! ele cuida fazer a minha felicidade. A fortuna de Mendonça parece-lhe uma garantia de paz e de ventura da minha vida. Como se engana!
— Mas não deves consentir nisso... Vou falar-lhe.
— É inútil, nem eu quero.
— Mas então...
— Olha, há talvez outra razão: creio que meu pai deve favores ao Mendonça; este apaixonou-se por mim, pediu-me; meu pai não teve ânimo de recusar-me. — Pobre amiga!
Sem conhecer ainda as nossas heroínas, já o leitor começa a lamentar a sorte da futura mulher de Mendonça. É mais uma vítima, dirá o leitor, imolada ao capricho ou à necessidade. Assim é. Carolina devia casar-se daí a alguns dias com Mendonça, e era isso o que lamentava a amiga Lúcia.
— Pobre Carolina!
— Boa Lúcia!
Carolina é uma moça de vinte anos, alta, formosa, refeita. Era uma dessas belezas que seduzem os olhos lascivos, e já por aqui ficam os leitores sabendo que Mendonça é um desses, com a circunstância agravante de ter meios com que lisonjear os seus caprichos. Bem vejo como me poderia levar longe este último ponto da minha história; mas eu desisto de fazer agora uma sátira contra o vil metal (por que metal?); e bem assim não me dou ao trabalho de descrever a figura da amiga de Carolina.
Direi somente que as duas amigas conversavam no quarto de dormir da prometida noiva de Mendonça.
Depois das lamentações feitas por Lúcia à sorte de Carolina, houve um momento de silêncio. Carolina empregou algumas lágrimas; Lúcia continuou:
— E ele?
— Quem?
— Fernando.
— Ah! esse que me perdoe e me esqueça; é tudo quanto posso fazer por ele. Não quis Deus que fôssemos felizes; paciência!
— Por isso o vi triste lá na sala!
— Triste? ele não sabe nada. Há de ser por outra coisa.
— O Mendonça virá?
— Deve vir.
As duas moças saíram para a sala. Lá se achava Mendonça em conversa com o pai de Carolina, Fernando a uma janela de costas para a rua, uma tia de Carolina conversando com o pai de Lúcia. Ninguém mais havia. Esperava-se a hora do chá. Quando as duas moças apareceram todos voltaram-se para elas. O pai de Carolina foi buscá-las e levou-as a um sofá.
Depois, no meio do silêncio geral, o velho anunciou o casamento próximo de Carolina e Mendonça.
Ouviu-se um grito sufocado do lado da janela. Ouviu-se, digo mal — não se ouviu; Carolina foi a única que ouviu ou antes adivinhou. Quando voltou os olhos para a janela, Fernando estava de costas para a sala e tinha a cabeça entre mãos. O chá foi tomado no meio de geral acanhamento. Parece que ninguém, além do noivo e do pai de Carolina, aprovava semelhante consórcio.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Cinco mulheres. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1865.