Por Pero de Magalhães Gândavo (1576)
Destes e doutros extremos semelhantes carece esta Província Santa Cruz porque com ser tão grande não tem Serras, ainda que muitas, nem desertos nem alagadiços que com facilidade se não possam atravessar. Alem disto é esta Província sem contradição a melhor pera a vida d.C. homem que cada uma das outras de America, por ser comumente de bons ares e fertilíssima, e em grão maneira deleitosa e aprazível á vista humana. O ser ela tão salutifera e livre de enfermidades, procede dos ventos que geralmente cursam nela: os quais são Nordestes e Sues, e algumas vezes Lestes e Lessuestes. E como todos estes procedam da parte do mar, vem tão puros e coados, que não somente não danam; mas recreiam e acrescentam a vida do homem. A viração destes ventos entra ao meio dia pouco mais ou menos e dura até de madrugada: então cessa por causa dos vapores da terra que o apagam, e quando amanhece as mais das vezes está o Céu todo coberto de nuvens, e assim as mais das manhãs chove nestas partes, e fica a terra toda coberta de névoa por respeito de ter muitos arvoredos que chamam a si todos estes humores. E neste intervalo sopra um vento brando que na terra se gera, até que o sol com seus raios o acalma, e entrando o vento do mar acostumado, torna o dia claro e sereno, e faz ficar a terra limpa e desimpedida de todas estas exalações.
Esta Província é à vista mui deliciosa e fresca em grão maneira: toda está vestida de mui alto e espesso arvoredo, regada com as águas de muitas e mui preciosas ribeiras de que abundantemente participa toda a terra, onde permanece sempre a verdura com aquela temperança da primavera que cá nos oferece Abril e Maio. E isto causa não haver lá frios, nem ruínas de inverno que ofendam as suas plantas, como cá ofendem às nossas. Em fim que assim se houve a Natureza com todas as cousas desta Província, e de tal maneira se comedio na temperança dos ares, que nunca nela se sente frio nem quentura excessiva.
As fontes que ha na terra são infinitas, cujas águas fazem crescer a muitos e mui grandes rios que por esta costa, assim da banda do Norte, como do Oriente, entram no mar Oceano. Alguns deles nascem no interior do sertão, os quais vem per longas e tortuosas vias a buscar o mesmo Oceano: onde suas correntes fazem afastar as marinhas águas per força, e entram nele com tanto ímpeto, que com muita dificuldade e perigo se pode por eles navegar. Um dos mais famosos e principais que ha nestas partes é o das Amazonas, o qual sai ao Norte meio grão da equinocial para o Sul e tem trinta léguas de boca pouco mais ou menos. Este rio tem na entrada muitas ilhas que o dividem em diversas partes e nasce de uma lagoa que está cem léguas do mar do Sul ao pé de umas serras do Quito, Província do Peru, donde partirão já algumas embarcações de Castelhanos, e navegando por ele abaixo vieram sair em o mar Oceano meio grão da Equinocial, que será distancia de 600 léguas per linha direita, não contando as mais que se acrescentam nas voltas que faz o mesmo rio. Outro mui grande cinqüenta léguas deste para Oriente sai tão bem ao Norte, a que chamam rio do Maranhão. Tem dentro muitas ilhas, e uma no meio da barra que está povoada de gentio, ao longo da qual podem surgir quaisquer embarcações. Terá este rio sete léguas de boca pela qual entra tanta abundância de água salgada, que daí cinqüenta léguas pelo sertão dentro, é nem mais nem menos como um braço de mar até onde se pode navegar per entre as Ilhas sem nenhum impedimento. Aqui se metem dous rios nele que vem do sertão, per um dos quais entrarão alguns Portugueses quando foi do descobrimento que foram fazer no ano de 35, e navegarão por ele a cima duzentas e cinqüenta léguas até que não poderão ir mais por diante por causa da água ser pouca, e o rio se ir estreitando de maneira que não podiam já por ele caber as embarcações. Do outro não descobrirão cousa alguma e assim se não sabe até gora donde procedem ambos.
Outro mui notável sai pela banda do Oriente ao mesmo Oceano a que chamam de Sam Francisco: cuja boca está em dez grãos e um terço, e será meia légua de largo. Este rio entra tão soberbo no mar, e com tanta fúria que não cega a maré à boca, somente faz algum tanto represar suas águas e daí três léguas ao mar se acha água doce. Corre-se da boca, do Sul pera o Norte: dentro é muito fundo e limpo, e pode-se navegar por ele ate sessenta léguas como já se navegou. E daí por diante se não pode passar por respeito de uma cachoeira mui grande que ha neste passo onde cai o peso da água de mui alto. E acima desta cachoeira se mete o mesmo rio debaixo da terra, e vem sair uma légua daí, e quando ha ceias arrebenta por cima e arrasa toda a terra. Este rio procede de um lago mui grande que está no intimo da terra, onde afirmam que ha muitas povoações, cujos moradores (segundo fama) possuem grandes haveres de ouro e pedraria. Outro rio mui grande, e um dos mais espantosos do mundo, sai pela mesma banda do Oriente em trinta e cinco grãos, a que chamam rio da Prata o qual entra no Oceano com quarenta léguas de boca: e é tanto o ímpeto de água doce que traz de todas as vertentes do Peru, que os navegantes primeiro no mar bebem suas águas, que vejam a terra donde este bem lhes procede. Duzentas e setenta léguas por ele acima está edificada uma Cidade povoada de Castelhanos que se chama Ascensão. Até aqui se navega por ele, e ainda daí por diante muitas léguas. Neste rio pela terra dentro se vem meter outro a que chamam Paraguai, que tão bem procede do mesmo lago como o de Sam Francisco que atras fica. Além destes rios ha outros muitos que pela costa ficam, assim grandes como pequenos, e muitas enseadas, baias, e braços de mar, de que não quis fazer menção, porque meu intento não foi se não escolher as cousas mais notáveis e principais da terra, e trata-las aqui somente em particular, para que assim não fosse notado de prolixo e satisfizesse a todos com brevidade.
CAPITULO III - Das Capitanias e povoações de portugueses que há nesta Província
(continua...)
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Lisboa: Oficina de António Gonçalves, 1576. Disponível em domínio público em: https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=17411. Acesso em: 26 nov. 2025.