Por Machado de Assis (1865)
— É verdade. Eu o descobri, e ela mo confessou. Sabe como eu era amigo dela; fiz tudo quanto pude para desviá-la de semelhante pensamento; mas tinha chegado tarde. A sentença estava lavrada; ela devia amar, adoecer e subir ao céu. Que amor, e que destino!
O velho tinha os olhos rasos de lágrimas; a mãe de Marcelina chorava e soluçava que cortava o coração. Quando ela pôde ficar um pouco calma, o médico continuou: — A entrevista que ela me pediu nos seus últimos dias foi para dar-me um papel, disse me então que lho entregasse depois da morte. Aqui o tem.
O médico tirou do bolso o papel que recebera de Marcelina e lho entregou intacto. — Leia-o, doutor. O segredo é nosso.
O doutor leu em voz alta e com voz trêmula:
Devo morrer deste amor. Sinto que e o primeiro e o último. Podia ser a minha vida e é a minha morte. Por quê? Deus o quer.
Não viu ele nunca que era eu a quem devia amar. Não lhe dizia acaso um secreto instinto que eu carecia dele para ser feliz? Cego! foi procurar o amor de outra, tão sincero como o meu, mas nunca tão grande e tão elevado! Deus o faça feliz!
Escrevi um pensamento mau. Por que me hei de revoltar contra minha irmã? Não pode ela sentir o que eu sinto? Se eu sofro por não ter a felicidade de possuí-lo não sofreria ela, se ele fosse meu? Querer a minha felicidade à custa dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me ensinou. Que ela seja feliz e sofra eu a minha sorte. Talvez eu possa viver; e nesse caso, ó minha Virgem da Conceição, eu só te peço que me dês a força necessária para ser feliz só com a vista dele, embora ele me seja indiferente.
Se mamãe soubesse disto talvez ralhasse comigo, mas eu acho que... O papel achava-se interrompido neste ponto.
O médico acabou estas linhas banhado em lágrimas. A mãe chorava igualmente. O segredo confiado aos dois morreu com ambos.
Mas um dia, tendo morrido a velha mãe de Marcelina, e procedendo-se ao inventário, foi achado o papel pelo cunhado de Marcelina... Júlio conheceu então a causa da morte a cunhada. Lançou os olhos para um espelho, procurando nas suas feições um raio da simpatia que inspirara a Marcelina, e exclamou:
— Pobre menina!
Acendeu um charuto e foi ao teatro.
II
Antônia
A história conhece um tipo da dissimulação, que resume todos os outros, como a mais alta expressão de todos: — é Tibério. Mas nem esse chegaria a vencer a dissimulação dos Tibérios femininos, armados de olhos e sorrisos capazes de frustrar os planos mais bem combinados e enfraquecer as vontades mais resolutas.
Antônia era uma mulher assim.
Quando eu a conheci era ela casada de doze meses. O marido tinha nela a mais plena confiança. Amavam-se ambos com o amor mais ardente e apaixonado que ainda houve. Era uma alma só em dois corpos. Se ele demorava fora de casa, Antônia não só velava todo o tempo, como desfazia-se em lágrimas de saudades e de dor. Apenas ele chegava, não havia o desenlace comum das recriminações estéreis; Antônia lançava-se-lhe aos braços e tudo voltava em bem.
Onde um não ia, não ia o outro. Para quê, se a felicidade deles residia em estarem juntos, viverem dos olhos um do outro, fora do mundo e dos seus vãos prazeres? Assim ligadas estas duas criaturas davam ao mundo o doce espetáculo de uma união perfeita. Eram o enlevo das famílias e o desespero dos mal casados. Antônia era bela; tinha vinte e seis anos. Estava no pleno desenvolvimento de uma dessas belezas robustas e destinadas a resistir à ação do tempo. Oliveira, seu marido, era o que se podia chamar um Apolo. Via-se que aquela mulher devia amar aquele homem e aquele homem devia amar aquela mulher.
Freqüentavam a casa de Oliveira alguns amigos, uns da infância, outros de data recente, alguns de menos de um ano, isto é, da data do casamento de Oliveira. A amizade é o melhor pretexto, até hoje inventado, para que um indivíduo pretenda tomar parte na felicidade de outro. Os amigos de Oliveira, que não primavam pela originalidade dos costumes, não ficaram isentos de encantos que a beleza de Antônia produzia em todos. Uns, menos corajosos, desanimaram diante do extremoso amor que ligava o casal; mas um houve, menos tímido, que assentou de si para si tomar lugar à mesa da ventura doméstica do amigo.
Era um tal Moura.
Não sei dos primeiros passos de Moura; nem das esperanças que ele pôde ir concebendo à proporção que corria o tempo. Um dia, porém, a notícia de que entre Moura e Antônia havia um laço de simpatia amorosa surpreendeu a todos.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Cinco mulheres. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1865.