Por Machado de Assis (1864)
Acrescentarei, para não dar azo aos esmerilhadores de inverossimilhanças, que Meneses conhecia muito bem o portador e sabia ou presumia saber de que tratavam as cartas em questão.
Guardadas as cartas, e sem tirar o braço a Cristiana, Meneses continuou o passeio e a conversação.
Cristiana estava confusa e trêmula. Durante alguns passos não trocaram uma palavra. Finalmente, Mcneses rompeu o silêncio perguntando a Cristiana: - Então, que me responde?
— Nada, murmurou a moça.
— Nada! exclamou Meneses. Nada! era então esse o amor que me tinha? — Cristiana levantou os olhos espantados para Meneses. Depois, procurando de novo tirar o braço do de Meneses, murmurou:
— Perdão, devo recolher-me.
— Meneses reteve-a de novo.
— Ouça-me primeiro, disse. Não lhe quero fazer mal algum. Se me não ama, pode dizê lo, não me zangarei; receberei essa confissão como o castigo do passo que dei, casando minha alma que se não achava solteira.
— Que estranha linguagem é essa? disse a moça. A que vem essa recodação de uma curta fase da nossa vida, de um puro brinco da adolescência?
— Fala de coração?
— Pois, como seria?
— Ah! não me faça crer que um perjúrio. . .
— Perjúrio!...
A moça sorriu-se com desdém. Depois continuou:
—Perjúrio é isto que faz. Perjúrio é trazer enganada a mais casta e a mais digna das
mulheres, a mais digna, ouve? Mais digna do que eu que ainda o ouço e lhe respondo. E dizendo isto Cristiana tentou fugir.
— Onde vai? perguntou Meneses. Não vê que está agitada? Poderia fazer nascer suspeitas. Demais, pouco tenho a dizer-lhe. É uma despedida. Nada mais, em nenhuma ocasião, ouvirá de minha boca. Supunha que através dos tempos e das adversidades tivesse conservado pura e inteira a lembrança de um passado que nos fez felizes. Vejo que me enganei. Nenhum dos caracteres superiores que eu enxergava em seu coração tinha existência real. Eram simples criações do meu espírito demasiado crédulo. Hoje que se desfaz o encanto, e que eu posso ver toda a enormidade da fraqueza humana, deixe me dizer-lhe, perdeu um coração e uma existência que não merecia. Saio-me com honra de um combate em que não havia igualdade de forças. Saio puro. E se no meio do desgosto em que me fica a alma, é-me lícito trazê-la à lembrança, será como um sonho esvaecido, sem objeto real na terra.
Estas palavras foram ditas em um tom sentimental e como que estudado para a ocasião. Cristiana estava aturdida. Lembrava-se que em vida de seu pai, tinha ela quinze anos, houvera entre ela e José de Meneses um desses namoros de criança, sem conseqüência, em que o coração empenha-se menos que a fantasia.
Com que direito vinha hoje Meneses reivindicar um passado cuja lembrança, se alguma havia, era indiferente e sem alcance?
Estas reflexões pesaram no espírito de Cristiana. A moça expô-las em algumas palavras cortadas pela agitação em que se achava, e pelas interrupções dramáticas de Meneses. Depois, como aparecesse Eulália à porta da casa, a conversa foi interrompida. A presença de Eulália foi um alívio para o espírito de Cristiana. Mal a viu, correu para ela, e convidou-a a passear pelo jardim, antes que anoitecesse.
Se Eulália pudesse nunca suspeitar da fidelidade de seu marido veria na agitação de Cristiana um motivo para indagações e atribulações. Mas a alma da moça era límpida e confiante, dessa confiança e limpidez que só dá o verdadeiro amor.
Deram as duas o braço, e dirigiram-se para uma alameda de casuarinas, situada na parte oposta àquela em que ficara passeando José de Meneses.
Este, perfeitamente senhor de si, continuou a passear como que entregue a suas reflexões. Seus passos, em aparência vagos e distraídos, procuravam a direção da alameda em que andavam as duas.
Depois de pousos minutos encontraram-se como que por acaso.
Meneses, que ia de cabeça baixa, simulou um ligeiro espanto e parou. As duas pararam igualmente.
Cristiana tinha a cara voltada para o lado. Eulália, com um divino sorriso, perguntou:
— Em que pensas, meu amor?
— Em nada.
— Não é possível, retorquiu Eulália.
— Penso em tudo.
— O que é tudo?
— Tudo? É o teu amor.
— Deveras?
E voltando-se para Cristiana, Eulália acrescentou:
— Olha, Cristiana, já viste um marido assim? É o rei dos maridos. Traz sempre na boca uma palavra amável para sua mulher. É assim que deve ser. Não esqueça nunca estes bons costumes, ouviu?
Estas palavras alegres e descuidosas foram ouvidas distraidamente por Cristiana. Meneses tinha os olhos cravados na pobre moça.
— Eulália, disse ele, parece que D. Cristiana está triste.
Cristiana estremeceu.
Eulália voltou-se para a amiga e disse:
— Triste! Já assim me pareceu. É verdade, Cristiana? Estarás triste? — Que idéia! Triste por quê?
— Ora, pela conversa que há pouco tivemos, respondeu Meneses.
Cristiana fitou os olhos em Meneses. Não podia compreendê-lo e não adivinhava onde queria ir o marido de Eulália.
Meneses, com o maior sangue frio, acudiu à interrogação muda que as duas pareciam fazer.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casada e Viúva. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, nov. 1864.