Por Pero de Magalhães Gândavo (1576)
Outro caso de não menos admiração aconteceu entre Porto-Seguro, e o Espírito Santo, naquelas guerras onde mataram Fernão deSá, filho de Men de Sá, que então era Governador geral destas partes. E foi que tendo os Portugueses rendida uma aldêa com favor dalguns Índios nossos amigos, que tinham de sua parte, chegaram a uma casa para fazerem presa aos inimigos, como já tinham feito em cada uma das outras. Mas eles deliberados a morrer, não consentiram que nenhum entrasse dentro: e os de fora vendo sua determinação, e que por nem uma via se queriam entregar, disseram-lhes que se logo á hora o não faziam, és haviam de pôr fogo á casa sem nenhuma remissão. E vendo os nossos que com eles não aproveitava este desengano, antes se punham de dentro em determinação de matar quantos podessem, és puseram fogo: e estando a casa assim ardendo o principal deles vendo que já não tinham nenhum remedio de salvação nem de vingança e que todos começavam de arder, remeteu de dentro com grande fúria a outro principal dos contrários, que passava por defronte da porta da banda de fora e de tal maneira o abarcou que sem se poder livrar de suas mãos, o meteu consigo em casa, e no mesmo instante se lançou com ele na fogueira, onde arderam ambos com os mais que lá estavam, sem escapar nenhum.
Neste mesmo tempo e lugar, deu um Português uma tão grande cutilada a um Índio, que quase o cortou pelo meio: o qual caindo no chão já como morto antes que acabasse de espirar lançou a mão a uma palha que achou diante de si, e a tirou com ela ao que o matara, como que dissera: recebe-me a vontade, que te não posso mais fazer que isto que te faço em sinal de vingança, donde verdadeiramente se pode inferir que outra nenhuma cousa os atormente mais na hora da sua morte que a mágoa que levam de se não poderem vingar de seus inimigos.
CAPÍTULO XII - Da morte que dão aos cativos e crueldades que suão com eles.
Uma das cousas em que estes Índios mais repugnam o ser da natureza humana, e em que totalmente parece que se extremam dos outros homens, é nas grandes e excessivas crueldades que executam em qualquer pessoa que podem haver ás mãos, como não seja de seu rebanho. Porque não tão somente lhe dam cruel morte em tempo que mais livres e desimpedidos estão de toda a paixão; mas ainda depois disso, por se acabarem de satisfazer lhe comem todos a carne usando nesta parte de cruezas tão diabólicas, que ainda nelas excedem aos brutos animais que não tem uso de razão nem foram nascidos para obrar clemência.
Primeiramente quando tomam algum contrario se logo naquele fragrante o não matam levam-no a suas terras para que mais a seu sabor se possam todos vingar dele. E tanto que a gente da aldêa tem noticia que eles trazem o tal cativo, daí lhe vão fazendo um caminho até obra de meia légua pouco mais ou menos onde o esperam. Ao qual em chegando recebem todos com grandes afrontas e vitupérios tangendo-lhe umas fraturas que costumam fazer das canas das pernas doutros contrários semelhantes que matam da mesma maneira E como entram na aldêa depois de assim andarem com ele triunfando de uma parte para outra lançam-lhe ao pescoço uma corda de algodão, que para isso tem feita, a qual é mui grossa, quanto naquela parte que o abrange, e tecida ou enlaçada de maneira que ninguém a pode abrir nem cerrar senão é o mesmo oficial que a faz. Esta corda tem duas pontas compridas per onde o tão de noite para não fugir. Dali o metem numa casa, e junto da estancia daquele que o cativou lhe armam uma rede, e tanto que nela se lança cessão todos os agravos sem haver mais pessoa que lhe faça nenhuma ofensa. E a primeira cousa que logo lhe apresentam é uma moça, a mais fermosa e honrada que ha na aldêa, a qual lhe dam por mulher: e daí por diante ela tem cargo de lhe dar de comer e de o guardar, e assim não vai nunca para parte que o não acompanhe.
(continua...)
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Lisboa: Oficina de António Gonçalves, 1576. Disponível em domínio público em: https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=17411. Acesso em: 26 nov. 2025.