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#Relatos#Literatura Brasileira

História da Província de Santa Cruz

Por Pero de Magalhães Gândavo (1576)

Reinando aquele mui Católico e Sereníssimo Príncipe El Rey Dom Manuel, fez-se uma frota para a Índia, de que ia por Capitão mor Pedro Alvares Cabral, que foi a segunda navegação que fizeram os Portugueses para aquelas partes do Oriente. A qual partiu da Cidade de Lisboa a nove de Março no ano de 1500. E sendo já entre as Ilhas do Cabo Verde, as quais iam demandar para fazer ai aguada, deu-lhes um temporal, que foi causa de as não poderem tomar, e de se apartarem alguns navios da companhia. E depois de haver bonança junta outra vez a frota, empregaram-se ao mar, assim por fugirem das calmarias de Guiné que lhes podiam estorvar sua viagem, como por lhes ficar largo poderem dobrar o Cabo de Boa Esperança. E havendo já um mês que iam naquela volta navegando com vento prospero, foram dar na Costa desta Província: ao longo da qual cortaram todo aquele dia, parecendo a todos que era alguma grande ilha que ali estava sem haver piloto nem outra pessoa alguma que tivesse noticia dela nem que presumisse que podia estar terra firme para aquela parte Ocidental. E no lugar que lhes pareceu dela mais acomodado, surgirão aquela tarde, onde logo tiveram vista da gente da terra: de cuja semelhança não ficarão pouco admirados, porque era diferente da de Guiné, e fora do comum parecer de toda outra que tinham visto. Estando assim surtos nesta parte que digo saltou aquela noite com eles tanto tempo, que lhes foi forçado levarem as ancoras, e com aquele vento que lhes era largo por aquele rumo, foram correndo a costa ate cegarem a um porto limpo, e de bom surgidouro, onde entrarão: ao qual puseram então este nome que hoje em dia tem de Porto Seguro, por lhes dar colheita, e os assegurar do perigo da tempestade que levavam Ao outro dia seguinte saiu Pedro Alvares em terra com a maior parte da gente na qual se disse logo missa cantada, e houve pregação: e os Índios da terra que ali se ajuntarão ouvirão tudo com muita quietação, usando de todos os atos e cerimonias que viam fazer aos nossos: e assim se punham de joelhos e batiam nos peitos como se tiveram lume de Fé, ou que por alguma via lhes fora revelado aquele grande e inefável mistério do Santíssimo Sacramento, no que se mostravam claramente estarem dispostos para receberem a doutrina Cristã a todo o tempo que lhes fosse denunciada como gente que não tinham impedimento de ídolos, nem professava outra Lei alguma que podesse contradizer a esta nossa, como adiante se verá no capitulo que trata de seus costumes. Então despediu logo Pedro Alvares um navio com a nova a El Rey Dom Manuel, a qual foi dele recebida com muito prazer e contentamento: e daí por diante começou logo de mandar alguns navios a estas partes e assim se foi a terra descobrindo pouco a pouco, e conhecendo de cada vez mais, até que depois se veio toda a repartir em Capitanias e a povoar da maneira que agora está. E tornando-a Pedro Alvares, seu descobridor, passado alguns dias que ali esteve fazendo sua aguada e esperando por tempo que lhe servisse, antes de se partir por deixar nome aquela Província, por ele novamente descoberta, mandou alçar uma cruz no mais alto lugar de uma arvore, onde foi arvorada com grande solenidade e bênçãos de Sacerdotes que levava em sua companhia, dando á terra este nome de Santa Cruz: cuja festa celebrava naquele mesmo dia a Santa Madre igreja, que era aos três de maio. O que não parece carecer de Mistério, porque assim como nestes Reinos de Portugal trazem a cruz no peito por insígnia da Ordem e Cavalaria de Christus, assim prove a ele que esta terra se descobrisse a tempo que o tal nome lhe podasse ser dado neste Santo dia, pois havia de ser possuída de Portugueses, e ficar por herança de patrimônio ao Mestrado da mesma Ordem de Christus. Por onde não parece razão que lhe neguemos este nome, nem que nos esqueçamos dele tão indevidamente por outro que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pão da tinta começou de vir a estes Reinos; ao qual chamaram brasil por ser vermelho, e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este nome de Brasil. Mas para que nesta parte magoemos ao Demônio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memória da Santa Cruz e desterra-la dos corações dos homens, mediante a qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania, tornemo-lhe a restituir seu nome e chamemo-lhe Província de Santa Cruz, como em principio (que assim o amoesta também aquele ilustre e famoso escritor João de Barros na sua primeira Década, tratando deste mesmo descobrimento) porque na verdade mais é destimar, e melhor soa nos ouvidos da gente Cristã o nome de um pão em que se obrou o mistério de nossa redenção que o doutro que não serve de mais que de tingir panos ou cousas semelhantes.

CAPITULO II - Em que se deve o Sitio e qualidades desta Província

Esta província Santa Cruz está situada naquela grande America, uma das quatro partes do mundo. Dista o seu principio dous grãos da equinocial para a banda do Sul, e daí se vai estendendo para o mesmo sul até quarenta e cinco grãos. De maneira que parte dela fica situada debaixo da Zona tórrida e parte debaixo da temperada. Está formada esta Província á maneira de uma harpa, cuja costa pela banda do Norte corre do Oriente ao Ocidente e está olhando direitamente a Equinocial; e pela do Sul confina com outras Províncias da mesma America povoada e possuídas de povo gentílico, com que ainda não temos comunicação. E pela do Oriente confina com o mar Oceano Áfrico, e olha direitamente os Reinos de Congo e Angola até o Cabo de Boa Esperança, que é o seu oposto. E pela do Ocidente confina com as altíssimas serras dos Andes e fraldas do Peru, as quais são tão soberbas em cima da terra qui se diz terem as aves trabalho em as passar. E até hoje um só caminho lhe acharão os homens vindos do Peru a esta Província, e este tão agro que em o passar perecem algumas pessoas caindo do estreito caminho que trazem, e vão parar os corpos mortos tão longe dos vivos que nunca os mais vem, nem podem ainda que queiram dar-lhe sepultura.

(continua...)

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