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#Romances#Literatura Brasileira

Cinco Mulheres

Por Machado de Assis (1865)

Mas quem pode responder pelo futuro? Marcelina, duas horas depois de estar em casa da irmã, teve uma vertigem. Foi levada para um sofá, mas tornada a si achou-se doente. Foi transportada para casa. Toda a família a acompanhou. A festa não teve lugar. Declarou-se uma nova febre.

O médico, que sabia o fundo da doença de Marcelina, procurou curar-lhe a um tempo o corpo e o coração. Os remédios do corpo pouco faziam, porque o coração era o mais doente. O médico quando empregava uma dose no corpo, empregava duas no coração. Eram os conselhos brandos, as palavras persuasivas, as carícias quase fraternais. A moça respondia a tudo com um sorriso triste — era a única resposta. Quando o velho médico lhe dizia:

— Menina, esse amor é impossível...

Ela respondia:

— Que amor?

— Esse: o de seu cunhado.

— Está sonhando, doutor. Eu não amo ninguém.

— É debalde que procura ocultar.

Um dia, como ela insistisse em negar, o doutor ameaçou-a sorrindo que ia contar tudo à mãe.

A moça empalideceu mais do que estava.

— Não, disse ela, não diga nada.

— Então, é verdade?

A moça não ousou responder: fez um leve sinal com a cabeça.

— Mas não vê que é impossível? perguntou o doutor.

— Sei.

— Então por que pensar nisso?

— Não penso.

— Pensa. É por isso que está tão doente...

— Não creia, doutor; estou doente porque Deus o quer; talvez fique boa, talvez não; é indiferente para mim; só Deus é quem manda estas coisas.

— Mas sua mãe?...

— Ela irá ter comigo, se eu morrer.

O médico voltou a cabeça para o lado de uma janela que se achava meio aberta. Esta conversa reproduziu-se muitas vezes, sempre com o mesmo resultado. Marcelina definhava a olhos vistos. No fim de alguns dias o médico declarou que era impossível salvá-la.

A família ficou desolada com esta notícia.

Júlio ia visitar Marcelina com sua mulher; nessas ocasiões Marcelina sentia-se elevada a uma esfera de bem-aventurança. Vivia da voz de Júlio. As faces se lhe coloriam e os olhos readquiriam um brilho celeste.

Depois voltava ao seu estado habitual.

Mais de uma vez quis o médico declarar à família qual era a verdadeira causa da moléstia de Marcelina; mas que ganharia com isso? Não viria daí o remédio, e a boa menina ficaria do mesmo modo.

A mãe, desesperada com aquele estado de coisas, imaginou todos os meios de salvar a filha; lembrou a mudança de ares, mas a pobre Marcelina raras vezes deixava de arder em febre.

Um dia, era um domingo de julho, a menina declarou que desejava comunicar alguma coisa ao doutor.

Todos os deixaram a sós.

— Que quer? perguntou o médico.

— Sei que é nosso amigo, e sobretudo meu amigo. Sei quanto sente a minha doença, e como lhe dói que eu não possa ficar boa...

— Há de ficar, não fale assim...

— Qual doutor! eu sei o que sinto! Se lhe quero falar é para dizer-lhe uma coisa. Quando eu morrer não diga a ninguém qual foi o motivo da minha morte.

— Não fale assim... interrompeu o velho levando o lenço aos olhos.

— Di-lo-á somente a uma pessoa, continuou Marcelina; é a minha mãe. Essa sim, coitada, que tanto me ama e que vai ter a dor de me perder! Quando lhe disser, entregue lhe então este papel.

Marcelina tirou debaixo do travesseiro uma folha de papel dobrada em quatro, e atada por uma fita roxa.

— Escreveu isto? Quando? perguntou o médico.

— Antes de adoecer.

O velho tomou o papel das mãos da doente e guardou-o no seu bolso. — Mas, venha cá, disse ele, que idéias são essas de morrer? Tão moça! Começa apenas a viver; outros corações podem ainda receber os seus afetos; para que quer tão cedo deixar o mundo? Pode ainda encontrar nele uma felicidade digna da sua alma e dos seus sentimentos... Olhe cá, ficando boa iremos todos para fora. A menina gosta da roça. Pois toda a família irá para a roça...

— Basta, doutor! É inútil.

Daí em diante Marcelina pouco falou.

No dia seguinte à tarde Júlio e a mulher vieram visitá-la. Marcelina achava-se pior. Toda a família estava ao pé da cama. A mãe debruçada à cabeça chorava silenciosamente. Quando veio a noite fechada, declarou-se a crise da morte. Houve então uma explosão de soluços; porém a menina, serena e calma, a todos procurava consolar dando-lhes a esperança de que iria orar por todos no céu.

Quis ver o piano em que tocava; mas era difícil satisfazer-lhe o desejo e ela facilmente se convenceu. Não desistiu porém de ver as músicas; quando elas lhas deram distribuiu-as pelas irmãs.

— Quanto a mim vou tocar outras músicas no céu.

Pediu algumas flores secas que tinha numa gaveta, e distribuiu-as igualmente pelas pessoas presentes.

Às oito horas expirou.

Um mês depois o velho médico, fiel à promessa que fizera à moribunda, pediu uma conferência particular à infeliz mãe.

— Sabe de que morreu Marcelina? perguntou ele; não foi de uma febre, foi de um amor. — Ah!

— É verdade.

— Quem era?

— A pobre menina pôs a sua felicidade num desejo impossível; mas não se revoltou contra a sorte; resignou-se e morreu.

— Quem era? perguntou a mãe.

— Seu genro.

— É possível? disse a pobre mãe dando um grito.

(continua...)

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