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#Romances#Literatura Brasileira

Casada e Viúva

Por Machado de Assis (1864)

Nogueira, cinco meses antes, saíra para aquela província a serviço do Estado e ali encontrou Cristiana, por quem se apaixonou e a quem soube inspirar uma estima respeitosa. Se eu dissesse amor, mentia, e eu tenho por timbre contar as cousas como as cousas são. Cristiana, órfã de pai e mãe, vivia na companhia de um tio, homem velho e impertinente, achacado de duas moléstias gravíssimas: um reumatismo crônico e uma saudade do regímen colonial. Devo explicar esta última enfermidade; ele não sentia que o Brasil se tivesse feito independente; sentia que, fazendo-se independente, não tivesse conservado a forma de governo absoluto. Gorou o ovo, dizia ele, logo depois de adotada a constituição. E protestando interiormente contra o que se fizera, retirou-se para Minas Gerais, donde nunca mais saiu. A esta ligeira notícia do tio de Cristiana acrescentarei que era rico como um Potosi e avarento como Harpagão.

Entrando na fazenda do tio de Cristiana e sentindo-se influído pela beleza desta, Nogueira aproveitou-se da doença política do fazendeiro para lisonjeá-la com umas fomentações de louvor do passado e indignação pelo presente. Em um servidor do Estado atual das cousas, achou o fazendeiro que era aquilo uma prova de rara independência, e o estratagema do capitão surtiu duas vantagens: o fazendeiro deu-lhe a sobrinha e mais um bom par de contos de réis. Nogueira, que só visava a primeira, achou-se felicíssimo por ter alcançado ambas. Ora, é certo que, sem as opiniões forjadas no momento pelo capitão, o velho fazendeiro não tiraria à sua fortuna um ceitil que fosse.

Quanto a Cristiana, se não sentia pelo capitão um amor igual ou mesmo inferior ao que lhe inspirava, votava-lhe uma estima respeitosa. E o hábito, desde Aristóteles todos reconhecem isto, e o hábito, aumentando a estima de Cristiana, dava à vida doméstica do Capitão Nogueira uma paz, uma tranqüilidade, um gozo brando, digno de tanta inveja como era o amor sempre violento do casal Meneses.

Voltando à corte, Cristiana esperava uma vida mais própria aos seus anos de moça do que a passada na fazenda mineira na companhia fastidiosa do reumático legitimista. Pouco que pudessem alcançar as suas ilusões, era já muito em comparação com o passado.

Dadas todas estas explicações, continuo a minha história.

CAPÍTULO II

DEIXO AO ESPÍRITO do leitor ajuizar como seria o encontro de amigos que se não vêem há muito.

Cristiana e Eulália tinham muito que contar uma à outra, e, em sala à parte, ao pé do berço em que dormia a filha de José de Meneses, deram largas à memória, ao espírito e ao coração. Quanto a Nogueira e José de Meneses, depois de narrada a história do respectivo casamento e suas esperanças de esposos, entraram, um na exposição das suas impressões de viagem, o outro na das impressões que deveria ter em uma viagem que projetava.

Passaram-se deste modo as horas até que o chá reuniu a todos quatro à roda da mesa de família. Esquecia-me dizer que Nogueira e Cristiana declararam desde o princípio que, tendo chegado pouco havia, tencionavam demorar-se uns dias em casa de Meneses até que pudessem arranjar na cidade ou nos arrabaldes uma casa conveniente.

Meneses e Eulália ouviram isto, pode-se dizer que de coração alegre. Foi decretada a instalação dos dous viajantes. Tarde se levantaram da mesa, onde o prazer de se verem juntos os prendia insensivelmente. Guardaram o muito que ainda havia a dizer para os outros dias e recolheram-se.

— Conhecia José de Meneses? perguntou Nogueira a Cristiana ao retirar-se para os seus aposentos.

— Conhecia de casa de meu pai. Ele ia lá há oito anos.

— É uma bela alma!

— E Eulália!

— Ambos! ambos! É um casal feliz!

— Como nós, acrescentou Cristiana abraçando o marido.

— No dia seguinte, foram os dous maridos para a cidade, e ficaram as duas mulheres entregues aos seus corações.

— De volta, disse Nogueira ter encontrado casa; mas era preciso arranjá-la, e foi marcado para os arranjos o prazo de oito dias.

— Os seis primeiros dias deste prazo correram na maior alegria, na mais perfeita intimidade. Chegou-se a aventar a idéia de ficarem os quatro habitando juntos. Foi Meneses o autor da idéia. Mas Nogueira alegou ter necessidade de casa própria e especial, visto como esperava alguns parentes do Norte.

— Enfim, no sétimo dia, isto é, na véspera de se separarem os dous casais, estava Cristiana passeando no jardim, à tardinha, em companhia de José de Meneses, que lhe dava o braço. Depois de trocarem muitas palavras sobre cousas totalmente indiferentes à nossa história José de Meneses fixou o olhar na sua interlocutora e aventurou estas palavras:

— Não tem saudade do passado, Cristiana?

A moça estremeceu, abaixou os olhos e não respondeu.

José de Meneses insistiu. A resposta de Cristiana foi:

— Não sei, deixe-me!

E forcejou por tirar o braço do de José de Meneses; mas este reteve-a. — Que susto pueril! Onde quer ir? Meto-lhe medo?

Nisto parou ao portão um moleque com duas cartas para José de Meneses. Os dous passavam neste momento em frente do portão. O moleque fez entrega das cartas e retirou-se sem exigir resposta.

Meneses fez os seguintes raciocínios: — Lê-las imediatamente era dar lugar a que Cristiana se evadisse para o interior da casa; não sendo as cartas de grande urgência, visto que o portador não exigira resposta, não havia grande necessidade de lê-las imediatamente. Portanto guardou as cartas cuidadosamente para lê-las depois.

E de tudo isto conclui o leitor que Meneses tinha mais necessidade de falar a Cristiana do que curiosidade de ler as cartas.

(continua...)

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