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#Relatos#Literatura Brasileira

História da Província de Santa Cruz

Por Pero de Magalhães Gândavo (1576)

Mas a vida que buscam e granjearia de que todos vivem, é á custa de pouco trabalho, e muito mais descansada que a nossa: porque não possuem nenhuma fazenda, nem procuram adquiri-la como os outros homens, e assim vivem livres de toda a cobiça e desejo desordenado de riquezas, de que as outras nações não carecem; e tanto que ouro nem prata nem pedras preciosas têm entre eles nenhuma valia, nem para seu uso têm necessidade de nenhuma cousa destas, nem doutras semelhantes.

Todos andam nus e descalços assim machos como fêmeas, e não cobrem parte alguma de seu corpo. As camas em que dormem são umas redes de fio de algodão que as Índias tecem num tear feito á sua arte; as quais tem nove, dez palmos de comprido, e apanham-nas com uns cordeeis que lhe rematam nos cabos, em que lhes fazem umas aselhas de cada banda por onde as penduram de uma parte e doutra, e assim ficam dous palmos pouco mais ou menos suspendidas do chão de maneira que lhes possam fazer fogo debaixo para se aquentarem de noite ou quando lhes for necessário.

Os mantimentos que plantão em suas roças, com que se sustentam são aqueles de que atras fiz menção, s. mandioca e milho saburro. Alem disto ajudam-se da carne de muitos animais que matam, assim com frechas como por industria de seus laços e fojos onde costumam caçar a maior parte deles. Tão bem se sustentam do muito marisco e peixes que vão pescar pela costa em jangadas, que são uns tres ou quatro paus pegados nos outros e juntos de modo que ficam á maneira dos dedos da mão estendida, sobre os quais podem ir duas ou tres pessoas ou mais se mais forem os paus, porque são mui leves e sofrem muito peso em cima d’água. Tem quatorze ou quinze palmos de comprimento, e de grossura ao redor, ocuparam dous pouco mais ou menos.

Desta maneira vivem todos estes Índios sem mais terem outras fazendas entre si, nem granjeiras em que se desvelem, nem tão pouco estados nem opiniões de honra, nem pompas para que as hajam mister: porque todos, como digo, são iguais e em tudo tão conformes nas condições, que ainda nesta parte vivem justamente, e conforme à lei da natureza.

CAPÍTULO XI - Das guerras que tem uns com os outros e a maneira com que se hão nelas.

Estes Índios têm sempre grandes guerras uns contra outros e assim nunca se acha neles paz nem será possível, segundo são vingativos e odiosos, vedarem-se entre eles estas discordais por outra nenhuma via, senão for por meios da doutrina cristã, com que os Padres da Companhia pouco a pouco os vão amansando como adiante direi.

As armas com que pelejam são arcos e frechas nas quais andam tão exercitados que de maravilha erram a cousa que apontam, por difícil que seja d'acertar. E no despedir delas são mui ligeiros em extremo, e sobre tudo mui arriscados nos perigos, e atrevidos em grão maneira contra seus adversários. Quando vão a guerra sempre lhes parece que têm certa a Victoria e que nenhum de sua companhia ha de morrer, e assim em partindo dizem, vamos matar, sem mais outro discurso, nem consideração, e não cuidam que tão bem podem ser vencidos. E somente com esta sede de vingança sem esperanças de despojos, nem doutro algum interesse que a isso os mova, vão muitas vezes buscar seus inimigos mui longe caminhando por serras, matos, desertos e caminhos mui ásperos.

Outros costumam ir por mar, de umas terras para outras em umas embarcações a que chamam Canoas, quando querem fazer alguns saltos ao longo da costa. Estas canoas são feitas á maneira de lançadeiras de tear, de um só pau em cada uma das quais vão vinte, trinta romeiros. Alem destas ha outras que são da casca de um pau do mesmo tamanho, que se acomodam muito ás ondas e são mui ligeiras, ainda que menos seguras; porque se alagam vão-se ao fundo, o que não têm as de pau que de qualquer maneira sempre andam em cima da água. E quando acontece alagar-se alguma os mesmos Índios se lançam ao mar e a sustentam até que a acabam d'esgotar, e outra vez se embarcam nela e tornam a fazer sua viagem.

Todos em seus combates são determinados, e pelejam mui animosamente sem nenhumas defensivas; e assim parece cousa estranha ver dous, tres mil homens nus de parte a parte frechar uns aos outros com grandes sovius e grita, maneando-se todos com grande ligeireza de uma parte para outra, para que não possam os inimigos apontar nem fazer tiro em pessoa certa. Porem pelejam desordenadamente e desmandam-se muito uns e outros em semelhantes brigas, porque não têm Capitão que os governe, nem outros oficiais de guerra a quem hajam de obedecer nos tais tempos; mas ainda que desta ordenança careçam, todavia por outra parte dão-se a grande manha em seus cometimentos, e são mui cautos no escolher do tempo em que hão de fazer seus assaltos ás aldeias dos inimigos, sobre os quais costumam dar de noite a hora em que os acém mais descuidosos. E quando acontece não poderem logo entra-los por alguma cerca de madeira lhes ser impedimento que eles têm ao redor da aldêa para sua defensão, fazem outra semelhante algum tanto separada da mesma aldêa e assim a vão chegando cada noite dez, doze passos, até que um dia amanhece pegada com a dos contrários, onde muitas vezes se acham tão vizinhos que vêm a quebrar as cabeças com paus que arremessam uns aos outros.

(continua...)

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