Por Pero de Magalhães Gândavo (1576)
Finalmente que como Deus tenha de muito longe esta terra dedicada á Cristandade e o interesse seja o que mais leva os homens trás si que outra nenhuma cousa que haja na vida, parece manifesto querer interte-los na terra com esta riqueza do mar até cegarem a descobrir aquelas grandes minas que a mesma terra promete, para que assim desta maneira tragam ainda toda aquela cega e bárbara gente que habita nestas partes, ao lume e conhecimento da nossa Santa Fé Católica, que será descobrir-lhe outras maiores no céu, o qual nosso Senhor permita que assim seja para gloria sua e salvação de tantas almas.
CAPÍTULO IX - Do monstro marinho que se matou na Capitania de São Vicente, ano 1564.
Foi causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a semelhança daquele fero e espantoso monstro marinho que nesta Província se matou no ano de 1564, que ainda que per muitas partes do mundo se tenha noticia dele, não deixarei todavia de a dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que acerca disto passou; porque na verdade a maior parte dos retratos ou quase todos em que querem mostrar a semelhança de seu horrendo aspecto, andam errados, e alem disso, conta-se o sucesso de sua morte por diferentes maneiras, sendo a verdade uma só a qual é a seguinte:
Na Capitania de São Vicente sendo já alta noite a horas em que todos começavam de se entregar ao sono, acertou de sair fora de casa uma Índia escrava do capitão; a qual lançando os olhos a uma várzea que está pegada com o mar, e com a povoação da mesma Capitania, viu andar nela este monstro, movendo-se de uma parte para outra com passos e meneios desusados, e dando alguns urros de quando em quando tão feios, que como pasmada e quase fora de si se veio ao filho do mesmo capitão, cujo nome era Baltazar Ferreira, e lhe deu conta do que vira parecendo-lhe que era alguma visão diabólica; mas como ele fosse não menos sisudo que esforçado, e esta gente da terra seja digna de pouco credito não lho deu logo muito às suas palavras, e deixando-se estar na cama, a tornou outra vez a mandar fora dizendo-lhe que se afirmasse bem no que era. E obedecendo a Índia a seu mandado, foi; e tornou mais espantada; afirmando-lhe e repetindo-lhe uma vez e outra que andava ali uma cousa tão feia, que não podia ser se não o demônio.
Então se levantou ele muito depressa e lançou mão a uma espada que tinha junto de si com a qual botou somente em camisa pela porta fora, tendo para si (quando muito) que seria algum tigre ou outro animal da terra conhecido com a vista do qual se desenganasse do que a Índia lhe queria persuadir, e pondo os olhos naquela parte que ela lhe assinalou viu confusamente o vulto do monstro ao longo da praia, sem poder divisar o que era, por causa da noite lho impedir, e o monstro tão bem ser cousa não vista e fora do parecer de todos os outros animais. E cegando-se um pouco mais a ele, para que melhor se podesse ajudar da vista, foi sentido do mesmo monstro: o qual em levantando a cabeça, tanto que o viu começou de caminhar para o mar donde viera.
Nisto conheceu o mancebo que era aquilo cousa do mar e antes que nele se metesse, acudiu com muita presteza a tomar-lhe a dianteira, e vendo o monstro que ele lhe embargava o caminho, levantou-se direito para cima como um homem ficando sobre as barbatanas do rabo, e estando assim a par com ele, deu-lhe uma estocada pela barriga, e dando-lha no mesmo instante se desviou para uma parte com tanta velocidade, que não pôde o monstro leva-lo debaixo de si: porem não pouco afrontado, porque o grande torno de sangue que saiu da ferida lhe deu no rosto com tanta força que quase ficou sem nenhuma vista: e tanto que o monstro se lançou em terra deixa o caminho que levava e assim ferido urrando com a boca aberta sem nenhum medo, remeteu a ele, e indo para o tragar a unhas, e a dentes, deu-lhe na cabeça uma cotilada mui grande, com a qual ficou já mui débil, e deixando sua vã porfia tornou então a caminhar outra vez para o mar. Neste tempo acudiram alguns escravos aos gritos da Índia que estava em vela: e cegando a ele, o tomaram todos já quase morto e dali o levaram á povoação onde esteve o dia seguinte á vista de toda a gente da terra.
E com este mancebo se haver mostrado neste caso tão animoso como se mostrou, e ser tido na terra por muito esforçado saiu todavia desta batalha tão sem alento e com a visão deste medonho animal ficou tão perturbado e suspenso, que perguntando-lhe o pai, que era o que lhe havia sucedido não lhe pôde responder, e assim como assombrado sem falar cousa alguma per um grande espaço. O retrato deste monstro, é este que no fim do presente capitulo se mostra, tirado pelo natural. Era quinze palmos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes.
Os Índios da terra lhe chamam em sua língua Hipupiàra que quer dizer demônio d'água. Alguns como este se viram já nestas partes, mas acham-se raramente. E assim tão bem deve de haver outros muitos monstros de diversos pareceres, que no abismo desse largo e espantoso mar se escondem, de não menos estranheza e admiração; e tudo se pode crer, por difícil que pareça: porque os segredos da natureza não foram revelados todos ao homem, para que com razão possa negar, e ter por impossível as cousas que não viu nem de que nunca teve noticia.
(continua...)
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Lisboa: Oficina de António Gonçalves, 1576. Disponível em domínio público em: https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=17411. Acesso em: 26 nov. 2025.