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#Relatos#Literatura Brasileira

História da Província de Santa Cruz

Por Pero de Magalhães Gândavo (1576)

Algumas aves notáveis ha tão bem nestas partes, a fora estas que tenho referido, de que tão bem farei menção e em especial tratarei logo de umas marítimas a que chamam Guarás, as quais seriam pouco mais ou menos do tamanho de gaivotas. A primeira pena de que a natureza as veste, é branca sem nenhuma mistura mui fina em extremo. E por espaço de dous anos pouco mais ou menos a mudam, e torna-lhes a nascer outra parda tão bem muito fina sem outra nenhuma mistura; e pelo mesmo tempo adiante a tornam a mudar, e ficam vestidas de uma muito preto distinta de toda outra cor. Depois daí a certo tempo pelo conseguinte a mudam e tornam-se a cobrir doutra mui vermelha, e tanto, como o mais fino e puro carmesim que no mundo se pode ver e nesta acabam seus dias.

Umas certas aves se acham tão bem na Capitania de Pernãobuco pela terra dentro maiores duas vezes que galos do Peru: as quais são pardas, e tem na cabeça acima do bico um esporão muito agudo como corno, variado de branco e pardo escuro, quase do comprimento de um palmo, e três semelhantes a este em cada aza, algum tanto mais pequenos, convém a saber uns nos encontros, outros nas juntas do meio, outros nas pontas das mesmas azas. Estas aves têm o bico como de águia, e os pés grossos e muito compridos. Nos joelhos tem uns calos tão bem como grandes punhos. Quando pelejam com outras aves viram-se de costas, e assim se ajudam de todas estas armas que a natureza lhes deu para sua defensão.

Outras aves ha tão bem nestas partes, cujo nome a todos cá é notório, as quais ainda que tenham mais oficio de animais terrestres que de aves pela razão que logo direi, todavia por serem realmente aves de que se pode escrever, e terem a mesma semelhança, não deixarei de fazer menção delas como de cada uma das outras. Chamam-se Emas, as quais terão tanta carne como um grande carneiro e têm as pernas tão grandes que são quase até os encontros das azas da altura de um homem. O pescoço é mui comprido em extremo, e têm a cabeça nem mais nem menos como de pata: são pardas brancas e pretas, e variadas pelo corpo de umas penas mui fermosas que cá entre nós costumam servir nas gorras e chapéus de pessoas galantes, e que profissão a arte militar. Estas aves pascem eras como qualquer outro animal do campo e nunca se levantam da terra, nem voam como as outras, somente abrem as azas e com elas, vem ferindo o ar ao longo da mesma terra: e assim nunca andam, senão em campinas onde se acém desimpedidas de matos e arvoredos, para juntamente poderem correr e voar da maneira que digo.

Doutras infinitas aves que ha nestas partes, a que a natureza vestiu de muitas e mui finas cores, poderá tão bem aqui fazer menção, mas como meu intento principal não foi na presente historia senão ser breve e fugir de cousas em que podesse ser notado de prolixo dos poucos curiosos, (como já tenho dito), quis somente particularizar estas mais notáveis e passar com silencio por todas as outras, de que se deve fazer menos caso.

CAPÍTULO VIII - De alguns peixes notáveis, baleias e âmbar que há nestas partes.

É tão grande a copia do saboroso e sadío pescado que se mata, assim no mar alto, como nos rios e baias desta Província de que geralmente os moradores são participantes em todas as Capitanias, que esta só fertilidade bastara a sustentalos abundantissimamente, ainda que não houvera carnes nem outro gênero de caça na terra de que se proveram como atras fica declarado.

E deixando á parte a muita variedade daqueles peixes que comumente não diferem na semelhança dos de cá, tratarei logo em especial de um certo gênero deles que ha nestas partes, a qué chamam peixes bois, os quais são tão grandes que os maiores pesam quarenta, cinqüenta arrobas. Têm o focinho como o de boi e dous cotos com que nadam á maneira de braços. As fêmeas têm duas tetas, com o leite das quais se criam os filhos. O rabo é largo, rombo, e não muito comprido: não têm feição alguma de nenhum peixe, somente na pele quer se parecer com toninha. Estes peixes pela maior parte se acham em alguns rios, ou baias desta costa, principalmente onde ha algum ribeiro, ou regato se mete na água salgada são mais certos: porque botão o focinho fora e pascem as ervas que se criam em semelhantes partes, e tão bem comem as folhas de umas arvores a que chamam Mangues, de que ha grande quantidade ao longo dos mesmos rios. Os moradores da terra os matam com arpões, e tão bem em pesqueiras costumam tomar alguns porque vem com a enchente da maré aos tais lugares, e com a vazante se tornam a ir para o mar donde vieram. Este peixe é muito gostoso em grande maneira, e totalmente parece carne, assim na semelhança, como no sabor, e assado não tem nenhuma diferença de lombo de porco. Tão bem se coze com couves e guisa-se como carne, e assim não ha pessoa que o coma que o julgue por peixe, salvo se o conhecer primeiro.

(continua...)

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