Por Machado de Assis (1864)
Machado de Assis (1839-1908) publicou o conto “Casada e Viúva” em novembro de 1864, no periódico Jornal das Famílias, no Rio de Janeiro. A narrativa revela as tensões entre casamento e traição, estabilidade e desejo, através de dois casais que encenam a felicidade aparente enquanto se questionam por dentro — típica mostra da ironia social e psicológica do autor.
CAPÍTULO PRIMEIRO
NO DIA em que José de Meneses recebeu por mulher Eulália Martins, diante do altar-mor da matriz do Sacramento, na presença das respectivas famílias, aumentou-se com mais um a lista dos casais felizes.
Era impossível amar-se mais do que se amavam aqueles dous. Nem me atrevo a descrevê-lo. Imagine-se a fusão de quatro paixões amorosas das que a fábula e a história nos dão conta e ter-se-á a medida do amor de José de Meneses por Eulália e de Eulália por José de Meneses.
As mulheres tinham inveja à mulher feliz, e os homens riam dos sentimentos, um tanto piegas, do apaixonado marido. Mas os dous filósofos do amor relevaram à humanidade as suas fraquezas e resolveram protestar contra elas amando-se ainda mais. Mal contava um mês de casado, sentiu José de Meneses, em seu egoísmo de noivo feliz, que devia fugir à companhia e ao rumor da cidade. Foi procurar uma chácara na Tijuca, e lá se encafuou com Eulália.
Ali viam correr os dias no mais perfeito descuido, respirando as auras puras da montanha, sem inveja dos maiores potentados da terra.
Um ou outro escolhido conseguiu às vezes penetrar no santuário em que os dous viviam, e de cada vez que de lá saía vinha com a convicção mais profunda de que a felicidade não podia estar em outra parte senão no amor.
Acontecia, pois, que, se as mulheres invejavam Eulália e se os homens riam de José de Meneses, as mães, as mães previdentes, a espécie santa, no dizer de E. Augier, nem riam nem se deixavam dominar pelo sexto pecado mortal: pediam simplesmente a Deus que lhes deparasse às filhas um marido da estofa e da capacidade de José de Meneses.
Mas cumpre dizer, para inspirar amor a maridos tais como José de Meneses, era preciso
mulheres tais como Eulália Martins. Eulália em alma e corpo era o que há de mais puro unido ao que há de mais belo. Tanto era um milagre de beleza carnal, como era um prodígio de doçura, de elevação e de sinceridade de sentimentos. E, sejamos francos, tanta cousa junta não se encontra a cada passo.
Nenhuma nuvem sombreava o céu azul da existência do casal Meneses. Minto, de vez em quando, uma vez por semana apenas, e isto só depois de cinco meses de casados, Eulália derramava algumas lágrimas de impaciência por se demorar mais do que costumava o amante José de Meneses. Mas não passava isso de uma chuva de primavera, que, mal assomava o sol à porta, cessava para deixar aparecer as flores do sorriso e a verdura do amor. A explicação do marido já vinha sobreposse; mas ele não deixava de dá-la apesar dos protestos de Eulália; era sempre excesso de trabalho que pedia a presença dele na cidade até uma parte da noite.
Ano e meio viveram assim os dous, ignorados do resto do mundo, ébrios da felicidade e da solidão.
A família tinha aumentado com uma filha no fim de dez meses. Todos que são pais sabem o que é esta felicidade suprema. Aqueles quase enlouqueceram. A criança era um mimo de graça angélica. Meneses via nela o riso de Eulália, Eulália achava que os olhos eram os de Meneses. E neste combate de galanteios passavam as horas e os dias.
Ora, uma noite, como o luar estivesse claro e a noite fresquíssima, os dous, marido e mulher, deixaram a casa, onde a pequena ficara adormecida, e foram conversar junto ao portão, sentados em cadeiras de ferro e debaixo de uma viçosa latada, sub tegmine fagi. Meia hora havia que ali estavam, lembrando o passado, saboreando o presente e construindo o futuro, quando parou um carro na estrada.
Voltaram os olhos e viram descer duas pessoas, um homem e uma mulher. — Há de ser aqui, disse o homem olhando para a chácara de Meneses . Neste momento o luar deu em cheio no rosto da mulher. Eulália exclamou: — É Cristiana!
E correu para a recém-chegada.
Os dous novos personagens eram o Capitão Nogueira e Cristina Nogueira, mulher do capitão.
O encontro foi o mais cordial do mundo. Nogueira era já amigo de José de Meneses, cujo pai fora colega dele na escola militar, andando ambos a estudar engenharia. Isto quer dizer que Nogueira era já homem dos seus quarenta e seis anos.
Cristiana era uma moça de vinte e cinco anos, robusta, corada uma dessas belezas da terra, muito apreciáveis, mesmo para quem goza uma das belezas do céu, como acontecia a José de Meneses.
Vinham de Minas, onde se haviam casado.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casada e Viúva. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, nov. 1864.