Letras+ | Letródromo | Letropédia | LiRA | PALCO | UnDF



Compartilhar Reportar
#Autos#Literatura Portuguesa

Auto da Festa de São Lourenço

Por José de Anchieta (1587)

O Auto da Festa de São Lourenço é uma peça jesuítica de José de Anchieta, criada como instrumento de catequese e domínio cultural sobre povos indígenas. Ao unir elementos cristãos a referências nativas, o auto servia à estratégia missionária de impor a fé europeia, revelando o caráter disciplinador e assimétrico das relações coloniais presentes no teatro jesuítico.

PERSONAGENS

GUAIXARÁ – rei dos diabos

AIMBIRÊ

SARAVAIA - criados de Guaixará

TATAURANA

URUBU

JAGUARUÇU – companheiros dos diabos

VALERIANO

DÉCIO – Imperadores romanos

SÃO SEBASTIÃO – padroeiro do Rio de Janeiro

SÃO LOURENÇO – padroeiro da aldeia de São Lourenço

VELHA

ANJO

TEMOR DE DEUS

AMOR DE DEUS

CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA

Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaixará chama Aimbirê e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, São Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimbirê se aproxima. O calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus, e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em São Lourenço. Faz-se o enterro do santo. Meninos índios dançam.

PRIMEIRO ATO

(Cena do martírio de São Lourenço) Cantam:

Por Jesus, meu salvador,

Que morre por meus pecados, Nestas brasas morro assado

Com fogo do meu amor

Bom Jesus, quando te vejo Na cruz, por mim flagelado, Eu por ti vivo e queimado

Mil vezes morrer desejo

Pois teu sangue redentor Lavou minha culpa humana, Arda eu pois nesta chama Com fogo do teu amor.

O fogo do forte amor,

Ah, meu Deus!, com que me amas Mais me consome que as chamas E brasas, com seu calor.

Pois teu amor, pelo meu

Tais prodígios consumou,

Que eu, nas brasas onde estou, Morro de amor pelo teu.

SEGUNDO ATO

(Eram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saravaia, seus criados)

GUAIXARÁ

Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira. Quem a teria trazido, com seus hábitos polidos estragando a terra inteira?

Só eu permaneço nesta aldeia como chefe guardião. Minha lei é a inspiração que lhe dou, daqui vou longe visitar outro torrão.

Quem é forte como eu? Como eu, conceituado?

Sou diabo bem assado. A fama me precedeu; Guaixará sou chamado.

Meu sistema é o bem viver. Que não seja constrangido o prazer, nem abolido. Quero as tabas acender com meu fogo preferido

Boa medida é beber cauim até vomitar. Isto é jeito de gozar a vida, e se recomenda a quem queira aproveitar.

A moçada beberrona trago bem conceituada. Valente é quem se embriaga e todo o cauim entorna, e à luta então se consagra.

Quem bom costume é bailar! Adornar-se, andar pintado, tingir pernas, empenado fumar e curandeirar, andar de negro pintado.

Andar matando de fúria, amancebar-se, comer um ao outro, e ainda ser espião, prender Tapuia, desonesto a honra perder.

Para isso com os índios convivi. Vêm os tais padres agora com regras fora de hora prá que duvidem de mim. Lei de Deus que não vigora.

Pois aqui tem meu ajudante-mor, diabo bem requeimado, meu bom colaborador: grande Aimberê, perversor dos homens, regimentado.

(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele. E ele a ajuda, como fazem os índios. Depois de chorar, achando-se enganada, diz a velha)

VELHA

O diabo mal cheiroso, teu mau cheiro me enfastia. Se vivesse o meu esposo, meu pobre Piracaê, isso agora eu lhe diria.

Não prestas, és mau diabo. Que bebas, não deixarei do cauim que eu mastiguei. Beberei tudo sozinha, até cair beberei. (a velha foge)

GUAIXARÁ

(Chama Aimberê e diz:)

Ei, por onde andavas tu?

Dormias noutro lugar?

AIMBIRÊ

Fui as Tabas vigiar, nas serras de norte a sul nosso povo visitar.

Ao me ver regozijaram, bebemos dias inteiros. Adornaram-se festeiros. Me abraçaram , me hospedaram, das leis de deus estrangeiros.

Enfim, confraternizamos. Ao ver seu comportamento, tranqüilizei-me. Ó portento! Vícios de todos os ramos tem seus corações por dentro.

GUAIXARÁ

Por isso no teu grande reboliço eu confio, que me baste os novos que cativaste, os que corrompeste ao vício.

Diz os nomes que agregaste.

AIMBIRÊ

Gente de maratuauã no que eu disse acreditaram; os das ilhas, nestas mãos deram alma e coração; mais os paraibiguaras.

É certo que algum perdi, que os missionários levaram a Mangueá. Me irritaram. Raivo de ver os tupis que do meu laço escaparam.

Depois dos muitos que nos ficaram os padres sonsos quiseram com mentiras seduzir. Não vê que os deixei seguir — ao meu apelo atenderam.

GUAIXARÁ

De que recurso usaste para que não nos fugissem?

AIMBIRÊ

Trouxe aos tapuias os trastes das velhas que tu instruíste em Mangueá. Que isto baste.

Que elas são de fato más, fazem feitiço e mandinga, e esta lei de Deus não vinga. Conosco é que buscam a paz, no ensino de nossa língua.

E os tapuias por folgarem, nem quiseram vir aqui. De dança os enlouqueci para a passagem comprarem para o inferno que acendi.

GUAIXARÁ

Já chega. Que tua fala me alegra, teu relatório me encanta.

AIMBIRÊ

Usarei de igual destreza para arrastar outras presas nesta guerra pouco santa.

(continua...)

12345678910
Baixar texto completo (.txt)

← Voltar← AnteriorPróximo →