Por José de Anchieta (1587)
Bom Castelhano parece! Estou bem alegre mano, que Espanhol seja o profano que no meu fogo padece.
Vou fingir-me castelhano e usar de diplomacia com Décio e Valeriano, porque o espanhol ufano sempre guarda a cortesia.
Oh, mais alta majestade! Beijo-vos a mão mil vezes, por vossa grã-crueldade pois justiça nem verdade guardastes, sendo juizes.
Sou mandado por São Lourenço queimado, levá-los à minha casa,
onde seja confirmado vosso imperial estado em fogo, que sempre abrasa.
Oh, que tronos e que camas eu vos tenho preparadas, nessas escuras moradas de vivas e eternas chamas de nunca ser apagadas!
VALERIANO
Ai de mim!
AIMBIRÊ
Vieste do Paraguai?
Que falais, em Carijó.
Sei todas línguas de cor.
Avança aqui, Saravaia!
Usa tu golpe maior!
VALERIANO
Basta! Que assim me assassinas, não tenho pecado nada! Meu chefe é a presa acertada.
SARAVAIA
Não, és tu que me fascinas, ó presa bem cobiçada.
DÉCIO
Ó miserável de mim, que nem basta ser tirano, nem falar em castelhano! Que é do mando em que me vi, e o meu poder soberano?
AIMBIRÊ
Jesus, Deus grande e potente, que tu, traidor, perseguiste, te dará sorte mais triste entregando-te em meu dente, a que, malvado, serviste.
Pois me honraste, e sempre me contentaste ofendendo ao Deus eterno. É justo pois que no inferno, palácio que tanto amaste, não sintas o mal do inverno.
Porque o ódio inveterado do teu duro coração não pode ser abrandado, se não for já martelado com a água do Flegeton.
DÉCIO
Olha que consolação para quem se está queimando! Sumos deuses, para quando adiais minha salvação, que vivo estou me abrasando?
Ai, ai! Que mortal desmaio! Esculápio, não me acodes?
Oh, Júpiter, porque dormes?
Que é do vosso raio?
Por que é que não me socorres?
AIMBIRÊ
Que dizeis?
De que mal vós padeceis? Que pulso mais alterado. É grande dor de costado este mal, que morreis! Haveis de ser bem sangrado!
Há dias que esta sangria se guardava para vós que sangráveis, noite e dia, com dedicada porfia aos santos servos de Deus. Muito desejo eu beber vosso sangue imperial. Oh, não me leveis a mal que com isso quero ser homem de sangue real.
DÉCIO
Que dizeis? Que disparate, e elegante desvario! Joguem-me dentro de um rio antes que o fogo me mate, ó deuses em que confio!
Não quereis socorrer-me, ou não podeis? Ó malditos fementidos, ingratos desconhecidos, que pouco vos condoeis de quem fostes tão servidos!
Se agora voar pudesse, vos iria derrocar dos vossos tronos celestes, feliz, se a mim me coubesse no fogo vos projetar.
AIMBIRÊ
Parece-me que é chegada a hora do frenesi, e com chama redobrada, a qual será descuidada dos deuses a quem servis.
São armas dos audazes cavaleiros que usam palavrório humano. E por isso, tão ufano, hoje vindes acolhê-los no romance castelhano.
SARAVAIA
Assim é. Pensava dar, de revés, golpes de afiados aços mas enfim, nossos balaços se chocaram através com bem poucos canhonaços.
Mas que boas bofetadas lhes reservo para dar! Os tristes, sem descansar, à força de tais pauladas com cães hão de ladrar.
VALERIANO
Que ferida! Tira-me logo esta vida pois, minha alta condição, contra justiça e razão veio a ser tão abatida que morro como ladrão!
SARAVAIA
Não é outro o galardão que concedo aos meus criados, senão morrer enforcados, e depois, sem remissão, ao fogo ser condenados!
DÉCIO
Essa é a pena redobrada que me causa maior dor: que eu, universal senhor, morra morte desonrada na forca como traidor.
Ainda se fosse lutando, dando golpes e reveses, pernas e braços cortando, como fiz com os franceses, acabaria triunfando.
AIMBIRÊ
Parece que estais lembrando, poderoso imperador, quando, com bravo furor, matastes, traição armando, Felipe, vosso senhor. Por certo que me alegrais e se cumpre meus anseios ante desabafos tais,
porque o fogo em que queimais provoca tais devaneios.
DÉCIO
Bem entendo que este fogo em que me acendo merece-me a tirania, pois com tão feroz porfia aos cristãos martirizando pelo fogo os consumia.
Mas que em minha monarquia acabe com tal pregão pois morrer como ladrão é muito triste agonia e dobrada confusão.
AIMBIRÊ
Como? Pedis confissão? Sem asas quereis voar? Ide, se quereis achar aos vossos atos perdão, à deusa Pala rogar.
Ou a Nero, esse cruel carniceiro do fiel povo cristão. Aqui está Valeriano, vosso leal companheiro, buscai-o por sua mão!
DÉCIO
Esses amargos chistes e agressões me acrescentam em paixões e mais dores, com tão profundos ardores
como de ardentes tições
E com isto crescem mais os fogos em que padeço. Acaba, que me ofereço em tuas mãos, Satanás, ao tormento que mereço.
AIMBIRÊ
Oh, quanto vos agradeço por esta boa vontade! Eu, com liberalidade quero dar-lhe bom refresco para vossa enfermidade.
Na cova onde o fogo se renova com ardores perenais, os vossos males fatais aí terão grande prova das agruras imortais.
DÉCIO
Que fazer, Valeriano, bom amigo! Testemunharás comigo desta pena envolvido na cadeia de fogo, deste castigo.
VALERIANO
(continua...)
ANCHIETA, José de. Auto da Festa de São Lourenço.