Por José de Anchieta (1587)
Apressa-te ! Corre! Já!
AIMBIRÊ
Aqui estou! Pronto! O que há! Será que vai me pender de novo este passarão?
ANJO
Reservei-te uma surpresa: tenho dois imperadores para dar-te como presa. De Lourenço, em chama acesa, foram ele os matadores.
AIMBIRÊ
Boa! Me fazes contente! À força os castigarei, e no fogo os queimarei como diabo eficiente.
Meu ódio satisfarei.
ANJO
Eia, depressa a afogá-los.
Que para o sol sejam cegos! Ide ao fogo cozinhá-los. Castiga com teus vassalos estes dois sujos morcegos.
AIMBIRÊ
Pronto! Pronto!
Sejam tais ordens cumpridas!
Reunirei meus demônios.
Saravaia, deixa os sonhos, traz-me de boa bebida que temos planos medonhos!
SARAVAIA
Já de nego me pintei, ó meu avô jaguaruna, e o cauim preparei, verás como beberei nesta festa da fortuna.
Que vejo? Um temiminó?
Ou filho de guaianá? Será esse um guaitacá que à mesa do jacaré sozinho vou devorar?
(Vê o Anjo e espanta-se.)
E este pássaro azulão, quem será que assim me encara?
Algum parente de arara?
AIMBIRÊ
É o anjo que em nossa mão põe duas presas bem raras.
SARAVAIA
Meus capangas, atenção! Tataurana, Tamanduá, vamos com calma por lá, que esses monstros quererão por certo me afogar.
AIMBIRÊ
Vamos!
SARAVAIA
Ai, os mosquitos me mordem! Espera, ou me comerão!
Tenho medo, quem me acode. Sou pequenino e eles podem tragar-me de supetão.
AIMBIRÊ
Os índios que não se fiam nesta conversa e se escondem se os mandam executar.
SARAVAIA
Têm razão se desconfiam, vivem sempre a se lograr.
AIMBIRÊ
Cala a boca, beberrão, só por isso és tão valente, moleirão impertinente!
SARAVAIA
Ai de mim, me prenderão, mas vou por te ver contente.
E a quem vamos devorar?
AIMBIRÊ
A algozes de São Lourenço.
SARAVAIA
Aqueles cheios de ranço? Com isto eu vou mudar meu nome, de que me canso.
Muito bem! Suas entranhas sejam hoje o meu quinhão.
AIMBIRÊ
Vou morder seu coração.
SARAVAIA
E os que não nos acompanham sua parte comerão.
(Chama quatro companheiros para que os ajudem.) Tataurana, traze a tua muçurana. Urubu, jaguaruçu, traz a ingapema. Sús Caborê, vê se te inflama pra comer estes perus.
(Acodem todos os quatro com suas armas)
TATAURANA
Aqui estou com a muçurana e os braços lhe comerei; A Jaguaraçu darei o lombo, a Urubu o crânio,
e as pernas a Caborê
URUBU
Aqui cheguei! As tripas recolherei, e com os bofes terei a panela a derramar. E esta panela verei minha sogra cozinhar.
JAGUARUÇU
Com esta ingapema dura as cabeças quebrarei, e os miolos comerei. Sou guará, onça, criatura, e antropófago serei.
CABORÊ
E eu que em demandas andei aos franceses derrotando, para um bom nome ir logrando, agora contigo irei estes chefes devorando.
SARAVAIA
Agora quietos! De rastros, não nos viram. Vou à frente. Que não escapem da gente.
Vigiarei. No tempo exato
ataquemos de repente.
(Vão todos agachados em direção a Décio e Valeriano que conversam)
DÉCIO
Amigo Valeriano minha vontade venceu. Não houve arte no céu que livrasse do meu plano o servo do Galileu.
Nem Pompeu e nem Catão nem Cesar, nem o Africano, nenhum grego nem troiano puderam dar conclusão a um feito tão soberano.
VALERIANO
O remate, grão-Senhor desta tão grande façanha foi mais que vencer Espanha. Jamais rei ou imperador logrou coisa tão estranha.
Mas, Senhor, esse quem é que vejo ali, tão armado com espadas e cordel, e com gente de tropel vindo tão acompanhado?
DÉCIO
É o grande deus nosso amigo, Júpiter, sumo senhor, que provou grande sabor com o tremendo castigo da morte deste traidor.
E quer, para reforçar as penas deste rufião, nosso império acrescentar com sua potente mão, pela terra e pelo mar.
VALERIANO
Mais me parece é que vem
a seus tormentos vingar, e a nós ambos enforcar. Oh! que cara feia tem!
Começo a me apavorar.
DÉCIO
Enforcar? Quem a mim pode matar, ou mover meus fundamentos? Nem a exaltação dos ventos, Nem a braveza do mar, nem todos os elementos!
Não temas, que meu poder, o que os deuses imortais me quiseram conceder, não se poderá vencer pois não há forças iguais.
De meu cetro imperial pendem reis, tremem tiranos. Venço a todos os humanos, e posso ser quase igual a esses deuses soberanos.
VALERIANO
Oh, que terrível figura! Não posso mais aguardar, que já me sinto queimar! Vamos, que é grande loucura tal encontro aqui esperar.
Ai! ai! que grandes calores!
Não tenho nenhum sossego. Ai, que poderosas dores! Ai, que férvidos ardores, que me abrasam como fogo!
DÉCIO
Oh, paixão! Ai de mim, que é o Plutão chegando pelo Aqueronte, ardendo como tição a levar-nos de roldão
ao fogo do Flegetonte.
Oh, coitado que me queimo! Esse queimado me queima com grande dor! Oh, infeliz imperador! Todo me vejo cercado
de penas e de pavor,
pois armado o diabo com seu dardo mais as fúrias infernais, vêm castigar-nos demais. Já nem sei o que hei falado com angústias tão mortais.
VALERIANO
O Décio, cruel tirano!
Já pagas, e pagará Contigo Valeriano, porque Lourenço cristão assado, nos assará.
AIMBERÊ
Ô Castelhano!
(continua...)
ANCHIETA, José de. Auto da Festa de São Lourenço.