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#Autos#Literatura Portuguesa

Auto da Festa de São Lourenço

Por José de Anchieta (1587)

Bebem cuim a seu jeito, como completos sandeus ao cauim rendem seu preito.

Esse cauim é que tolhe sua graça espiritual. Perdidos no bacanal seus espíritos se encolhem em nosso laço fatal.

SÃO LOURENÇO

Não se esforçam por orar na luta do dia a dia.

Isto é fraqueza, de certo.

AIMBIRÊ

Sua boca respira perto do pouco que Deus confia.

SARAVAIA

É verdade, intimamente resmungam desafiando ao Deus que os está guiando. Dizem: “Será realmente capaz de me ver passando?”

SÃO SEBASTIÃO

(Para Saravaia:)

Serás tu um pobre rato?

Ou és um gambá nojento? Ou és a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os índios no mato?

SARAVAIA

No anseio de devorar as almas, sequer dormi.

GUAIXARÁ

Cala-te! Fale eu por ti.

SARAVAIA

Não vás me denominar, pra que não me mate aqui.

Esconda-me, antes, dele.

Eu por ti vigiarei.

GUAIXARÁ

Cala-te! Te guardarei! Que a língua não te revele, depois te libertarei.

SARAVAIA

Se não me viu, safarei.

Inda posso me esconder.

SÃO SEBASTIÃO

Cuidado que lançarei o dardo em que o flecharei.

GUAIXARÁ

Deixa-o. Vem de adormecer.

SÃO SEBASTIÃO

A noite ele não dormiu

para os índios perturbar

SARAVAIA

Isso não se há de negar.

(Açoita-o Guaixará e diz:)

GUAIXARÁ

Cala-te! Nem mais um pio, que ele quer te devorar.

SARAVAIA

Ai de mim! Por que me bates assim, pois estou bem escondido?

(Aimbirê com São Sebastião.)

AIMBIRÊ

Vamos! Deixa-nos a sós, e retirai-vos que a nós meu povo espera afligido.

SÃO SEBASTIÃO

Que povo?

AIMBIRÊ

Todos os que aqui habitam desde épocas mais antigas, velhos, moças, raparigas, submissos aos que lhes ditam nossas palavras amigas.

Vou contar todos seus vícios, Em mim acreditarás?

SÃO SEBASTIÃO

Tu não me convencerás.

AIMBIRÊ

Têm bebida aos desperdícios, cauim não lhes faltará. De ébrios dão-se ao malefício, ferem-se, brigam, sei lá!

SÃO SEBASTIÃO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba, disso não os livrarás.

AIMBIRÊ

Censura aos índios? Conversa! Vem logo o dono da farra, convida todos à festa, velhos, jovens, moçocaras com morubixaba à testa.

Os jovens que censuravam com morubixaba dançam, e de comer não se cansam, e no cauim se lavam, e sobre as moças avançam.

SÃO SEBASTIÃO

Por isso aos aracajás vivem vocês freqüentando, e a todos aprisionando.

AIMBIRÊ

Conosco vivem em paz, pois se entregam aos desmandos.

SÃO SEBASTIÃO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando.

AIMBIRÊ

Não sei. Vamos trabalhando, e ao vícios bem se convertem à força do nosso mando.

GUAIXARÁ

Eu que te ajude a explicar. As velhas, como serpentes, injuriam-se entre dentes, maldizendo sem cessar. As que mais calam consentem.

Pecam as inconseqüentes com intrigas bem tecidas, preparam negras bebidas pra serem belas e ardentes no amor na cama e na vida.

AIMBIRÊ

E os rapazes cobiçosos, perseguindo o mulherio para escravas do gentio... Assim invadem fogosos... dos brancos o casario.

GUAIXARÁ

Esta história não termina antes que desponte a lua, e a taba se contamina.

AIMBIRÊ

E nem sequer raciocinam que é o inferno que cultuam.

SÃO LOURENÇO

Mas existe a confissão, bem remédio para a cura. Na comunhão se depura da mais funda perdição a alma que o bem procura.

Se depois de arrependidos os índios vão confessar dizendo: “Quero trilhar o caminho dos remidos”. — o padre os vai abençoar.

GUAIXARÁ

Como se nenhum pecado tivessem, fazem a falsa confissão, e se disfarçam dos vícios abençoados, e assim viciados passam.

AIMBIRÊ

Absolvidos dizem: “na hora da morte meus vícios renegarei”. E entregam-se à sua sorte.

GUAIXARÁ

Ouviste que enumerei os males são seu forte.

SÃO LOURENÇO

Se com ódio procurais tanto assim prejudicá-los, não vou eu abandoná-los. E a Deus erguerei meus ais para no transe ampará-los.

Tanto confiaram em mim construindo esta capela, plantando o bem sobre ela. Não os deixarei assim sucumbir sem mais aquela.

GUAIXARÁ

É inútil, desista disso! Por mais força que lhes dês, com o vento, num dois três daqui lhes darei sumiço. Deles nem sombra vereis.

Aimbirê vamos conservar a terra com chifres, unhas, tridentes, e alegrar as nossas gentes.

AIMBIRÊ

Aqui vou com minhas garras,

meus longos dedos, meus dentes,

ANJO

Não julgueis, tolos dementes, por no fogo esta legião, Aqui estou com Sebastião e São Lourenço, não tentem levá-los à danação. Pobres de vós que irritastes

de tal forma o bom Jesus Juro que em nome da cruz ao fogo vos condenastes. (Aos santos.)

Prendei-os donos da luz!

(Os santos prendem os dois diabos.)

GUAIXARÁ

Basta!

SÃO LOURENÇO

Não! Teu cinismo me agasta. Destes provas que sobejam de querer destruir a igreja.

SÃO SEBASTIÃO

(A Aimberê:)

Grita! Lamenta! Te arrasta!

Te prendi!

AIMBIRÊ

Maldito Seja!

(Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido.)

ANJO

E tu que está escondido será acaso um morcego? Sapo cururu minguá, ou filhote de gambá, ou bruxa pedindo arrego?

Sai daí seu fedorendo, abelha de asa de vento, zorrilho, maritaca, seu lesma, tamarutaca.

SARAVAIA

Ai vida, que me aprisionam! Não vês que morro de sono?

ANJO

Quem és tu?

(continua...)

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