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#Autos#Literatura Portuguesa

Auto da Festa de São Lourenço

Por José de Anchieta (1587)

O povo Tupinambá que em Paraguaçu morava, e que de Deus se afastava, deles hoje um só não há, todos a nós se entregaram.

Tomamos Moçupiroca,

Jequei, Gualapitiba, Niterói e Paraíba,

Guajajó, Carijó-oca,

Pacucaia, Araçatiba

Todos os tamoios foram

Jazer queimando no inferno. Mas há alguns que ao Padre Eterno fiéis, nesta aldeia moram, livres do nosso caderno.

Estes maus Temiminós nosso trabalho destroem.

GUAIXARÁ

Vem tentá-los que se moem a blasfemar contra nós. Que bebam, roubem e esfolem.

Que provoquem muitas lutas, muitos pecados cometam, por outro lados se metam longe desta aldeia, à escuta dos que as nossas leis prometam.

AIMBIRÊ

É bem difícil tentá-los. Seu valente guardião me amedronta.

GUAIXARÁ

E quais são?

AIMBIRÊ

É São Lourenço a guiá-los, de Deus fiel Capitão.

GUAIXARÁ

Qual? Lourenço o consumado nas chamas qual somos nós?

AIMBIRÊ

Esse.

GUAIXARÁ

Fica descansado. Não sou assim tão covarde, será logo afugentado.

Aqui está quem o queimou e ainda vivo o cozeu.

AIMBIRÊ

`Por isso o que era teu ele agora libertou

e na morte te venceu.

Há também o seu amigo Bastião, de flechas crivado.

GUAIXARÁ

O que eu deixei transpassado? Não faças broma comigo que sou bem desaforado. Ambos fugirão logo aqui me virem chegar.

AIMBIRÊ

Olha que vais te enganar!

GUAIXARÁ

Tem confiança, te rogo, que horror lhes vou inspirar.

Quem como eu nas terras existe que até Deus desafiou?

AIMBIRÊ

Por isso Deus te expulsou, e do inferno o fogo triste para sempre te abrasou.

Eu lembro de outra batalha em que Guaixará entrou. Muito povo te apoiou, e, inda que lhes desses forças, na fuga se debandou.

Não eram muitos cristãos. Contudo nada ficou da força que te inspirou, pois veio Sebastião, na força fogo ateou.

GUAIXARÁ

Por certo aqueles cristãos tão rebeldes não seriam. Mas esses que aqui estão desprezam a devoção e a Deus não reverenciam.

Vais ver como em nossos laços caem, logo estes malvados! De nossos dons confiados, as almas cederam passo para andar do nosso lado.

AIMBIRÊ

Assim mesmo tentarei.

Um dia obedecerão.

GUAIXARÁ

Ao sinal de minha mão os índios te entregarei.

E à força sucumbirão.

AIMBIRÊ

Preparemos a emboscada. Não te afobes. Nosso espia verá em cada morada que armas nos são preparadas na luta que se inicia.

GUAIXARÁ

Muito bem és capaz disso Saravaia meu vigia?

SARAVAIA

Sou demônio da alegria e assumi tal compromisso.

Vou longe nesta porfia.

Saravaiaçu me chamo.

Com que tarefa me aprazas?

GUAIXARÁ

Ouve as ordens de teu amo, quero que espies as casas

e voltes quando te chame.

Hoje vou deixar que leves os índios aprisionados.

SARAVAIA

Irei onde me carregues. E agradeço que me entregues encargo tão desejado.

Como Saravaia sou, aos índios que me aliei enfim aprisionarei.

E neste barco me vou.

De cauim me embriagarei.

GUAIXARÁ

Anda logo! vai ligeiro!

SARAVAIA

Como um raio correrei!

(Sai)

GUAIXARÁ

(Passeia com Aimbirê e diz:)

Demos um curto passeio Quando volte o mensageiro a aldeia destroçarei.

(Volta Saravaia e Aimberê diz:)

AIMBIRÊ

Danado! Voltou voando!

GUAIXARÁ

Demorou menos que um raio!

Foste mesmo, Saravaia?

SARAVAIA

Fui. Já estão comemorando os índios nossa vitória.

Alegra-te! Transbordava o cauim, o prazer regurgitava. E a beber, as igaçabas esgotam até o fim.

GUAIXARÁ

E era forte?

SARAVAIA

Forte estava. E os rapazes beberrões que pervertem esta aldeia, caiam de cara cheia. Velhos, velhas, mocetões que o cauim desnorteia.

GUAIXARÁ

Já basta. Vamos mansinho tomá-los todos de assalto. Nosso fogo arda bem alto.

(Vem São Lourenço com dois companheiros. Diz Aimbirê:)

AIMBIRÊ

Há um sujeito no caminho que me ameaça de assalto.

Será Lourenço, o queimado?

SARAVAIA

Ele mesmo, e Sebastião.

AIMBIRÊ

E o outro, dos três que são?

SARAVAIA

Talvez seja o anjo mandado, desta aldeia o guardião.

AIMBIRÊ

Ai! Eles me esmagarão!

Não posso sequer olhá-los.

GUAIXARÁ

Não te entregues assim não, ao ataque, meu irmão! Teremos que amedrontá-los, As flechas evitaremos, fingiremos de atingidos.

AIMBIRÊ

Olha, eles vêm decididos a açoitar-nos. Que faremos? Penso que estamos perdidos.

(São Lourenço fala a Guaixará:)

SÃO LOURENÇO

Quem és tu?

GUAIXARÁ

Sou Guaixará embriagado, sou boicininga, jaguar, antropófago, agressor, andirá-guaçu alado, sou demônio matador.

SÃO LOURENÇO

E este aqui?

AIMBIRÊ

Sou jibóia, sou socó, o grande Aimbirê tamoio. Sucuri, gavião malhado, sou tamanduá desgrenhado, sou luminosos demônio.

SÃO LOURENÇO

Dizei-me o que quereis desta

minha terra em que nos vemos.

GUAIXARÁ

Amando os índios queremos que obediência nos prestem por tanto que lhes fazemos. Pois se as coisas são da gente, ama-se sinceramente.

SÃO SEBASTIÃO

Quem foi que insensatamente, um dia ou presentemente? os índios vos entregou?

Se o próprio Deus tão potente deste povo em santo ofício corpo e alma modelou!

GUAIXARÁ

Deus? Talvez remotamente pois é nada edificante a vida que resultou.

São pecadores perfeitos, repelem o amor de Deus, e orgulham-se dos defeitos.

AIMBIRÊ

(continua...)

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