Entrevista com o escritor Kuzman FERNANDO FIDELIX NUNES (2025) Kuzman (Luiz Antônio Gusmão) nasceu em Recife em 1981 e vive no Distrito Federal desde 1991. Mais de três décadas no Planalto Central o ajudaram a construir uma poética que dialoga com o ambiente local e a se engajar na difusão da literatura do Distrito Federal. Nesta entrevista vamos conhecer um pouco mais sobre a poesia de Kuzman e o seu empenho em ler e divulgar a literatura do Distrito Federal. Fernando Fidelix Nunes: O haicai é gênero poético de origem japonesa que conquista leitores há séculos. Como você se aproximou desse gênero? O que lhe motivou a publicar o livro “Água de romãs” (2023) como uma obra exclusiva de haicais?Kuzman: Eu me aproximei do haicai aos poucos, ao mesmo tempo em que escrevia poemas mais longos, com ou sem forma fixa. Meu primeiro contato com essa forma tradicional da poesia japonesa foi nos bancos escolares com os haicais de Leminski e de Millôr. Um haicai aclimitado ao proverbial jeitinho brasileiro - cômico, informal, leve e sentimental.Levei muito tempo para começar a escrevê-los. Apenas depois de ter concluído o doutorado em Relações Internacionais, em 2015, comecei a reunir os escritos com vistas à publicação, fui percebendo que eu tinha um gosto pela captura de imagens vívidas com o mínimo de palavras que deixam uma sensação esquisita, de espanto e abertura ao que está ao nosso redor.Só comecei a estudar seriamente e a praticar com intenção o haicai em 2017, depois de um leitura crítica profissional do que viria a ser o "Voz para cavar por dentro" (Ofícios terrestres, 2024), quando recebi a sugestão de ampliar uma seção que eu intitulara "Haicais candangos" porque eles tinham uma autonomia formal e temática e mereciam ser destacados em uma publicação própria.Fascinado, comecei a ler antologias de haicais japoneses, a conhecer a sua história, as escolas tradicionais, a sua absorção e a difusão pelas literaturas de língua ocidental, as diferentes vertentes do haicai no Brasil, os grupos que o cultivam até hoje em nosso clima. Em 2020, durante a pandemia, lancei em autopublicação eletrônica pela Amazon-Kindle, o "azul-planalto" que trazia muitos daqueles primeiros haicais e vários outros frutos da minha prática pessoal. "água de romãs", de 2023, reúne haicais que escrevi durante e logo após a pandemia, refletindo muito do que foi experimentado nesse período de semirreclusão e pânico coletivo.Hoje, um de meus projetos literários é explorar o dia a dia de quem vive no DF como pessoa comum. O haicai para mim é essa prática contínua de perceber o espaço do Planalto Central como um habitante deste grande projeto urbanístico de uma cidade-jardim, que abriga a espontaneidade teimosa e surpreendente da sua gente, das espécies de sua flora e sua fauna.Fernando Fidelix Nunes: Para lançar o seu livro “Voz para cavar por dentro”, você fez uma campanha de financiamento coletivo. Após esse projeto, você aconselha novos autores a usarem esse método para financiarem suas obras?Kuzman: Eu fiquei muito feliz com o resultado da campanha de financiamento que reuniu parentes, amigos, colegas e algumas pessoas que nunca encontrei pessoalmente, mas que a literatura me fez conhecer. Foi um período curto e intenso que exigiu bastante dedicação e tato para divulgação da campanha por meio de mensagens em grupos de WhatsApp, postagens regulares de chamamento e atualização, mensagens em privado tanto para agradecimento como para lembrança das metas a bater.Há um trabalho de corpo a corpo de formação do público tanto antes como depois que o escritor deve estar disposto a assumir e do qual depende muito do sucesso da publicação. Eu fiz questão de fazer postagens regulares sobre vários aspectos do meu livro: a arte da capa, o texto da orelha, trechos da apresentação, uma amostra de poemas, fotos e vídeos para lembrete de prazos, reforço de pedidos de divulgação, lembretes de metas... Isso exigiu muita disciplina, criatividade, e um exercício constante de exposição, mas se traduziu em uma aproximação maior de meu livro com o público leitor que afluiu de todas as partes do país.No fim das contas, sinto que o maior ou o menor sucesso da campanha, depende muito da atuação do escritor nas suas comunidades literárias: nos clubes de leitura, nas oficinas de escrita, nas interações e relacionamentos que ele cultiva paralelamente à dedicação pessoal à sua obra.Isso dito, acredito que cada escritor deve avaliar a melhor forma de publicar sua obra de acordo com suas condições pessoais e o seu projeto literário específico. O mais importante é encontrar uma editora que ofereça uma parceria transparente e uma forma de divulgação apropriadas para a obra em questão. Isso exige muita reflexão, paciência e discernimento – numa palavra, consciência sobre o momento e os cursos de ação possíveis para publicação.Fernando Fidelix Nunes: A sua obra poética é marcada pelo lirismo e pela problematização da relação entre o ser humano e o ambiente, especialmente no âmbito da RIDE-DF. Você pretende continuar nessa linha ou irá explorar novos horizontes poéticos?Kuzman: Eu vejo minha obra poética (haicaística ou lírica) como uma prática de atenção ao tempo e ao lugar, uma forma de me inserir no mundo e estar entre os seres e as coisas como um igual: sem humanizar o que é da ordem das coisas nem ser por elas reificado. Assim, venho trabalhando nas duas direções: tanto em poemas que aprofundam a vivência com o meio social em que me insiro quanto na experimentação de outras possibilidades formais e temáticas.É no contexto dessa poética que venho me revezando entre alguns projetos: 1) um livro de haicais oníricos, 2) uma coleção de retrancas (forma poética criada pelo poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo) para explorar o imaginário da cultura pop, 3) uma série de poemas em forma livre sobre Brasília (a cidade real, a utópica e a distópica), 4) um poema mítico-narrativo, em três partes, sobre o embate da humanidade com a natureza.Fernando Fidelix Nunes: Você é um dos organizadores de um clube de leitura de autores da Literatura do Distrito Federal. Como surgiu a ideia de criar esse clube? Como foi o processo de elaborar a curadoria desse projeto?Kuzman: A ideia do clube de leitura de autores do DF surgiu como um desdobramento do projeto #LeiaBsb (@leia.bsb), idealizado e realizado pela jornalista e escritora candanga Maíra Valério. Em 2023, Maíra conduziu uma campanha bem-sucedida de doação de livros de autoras e autores locais para a Biblioteca Pública de Brasília. Daí para propor a leitura coletiva dessas obras - aproximando leitores dos próprios escritores - foi apenas um passo, resultado de uma parceria entre o Leia Bsb e o Coletivo Lendo Contos, do qual eu fazia parte. Lembro que Maíra resumiu muito bem o espírito do projeto ao constatar que “a gente tinha as estantes cheias de livros de autorias locais; só faltava agora quem os lesse”.Na primeira e na segunda temporadas, os critérios curatoriais foram simples: discutir um conto de publicação recente de autoras e autores do DF. A partir desses critérios, levantamos nomes, entramos em contato diretamente com cada escritor e organizamos encontros muito profícuos em espaços culturais tanto do Plano Piloto quanto das cidades-satélites. Nessas edições, estiveram conosco Alexandre Arbex, Luiza Fariello, Maíra Valério, Cristiane Sobral, Paulliny Tort, André Giusti, Rosângela Vieira da Rocha, Beatriz Leal Craveiro, Maria Amélia Eloi, Gabrielle Alves e Leonardo Almeida Filho.A partir da terceira e quarta temporadas (2024–2025), já em parceria com a Platô Livraria, ampliamos o escopo: passamos a ler obras integrais de autores e autoras em diferentes gêneros literários — poesia (Kuzman e Nadja Rodrigues), romance (Dan, Breno Kümmel, Ana Raja, Virgínia Ferreira, Fabiane Guimarães) e conto (Alexandre Arbex, Maurício de Almeida). Atualmente o clube está em recesso, mas em breve retomaremos os encontros para continuar fortalecendo a circulação da literatura produzida no DF, fruto de uma cultura viva e em pleno desenvolvimento.Fernando Fidelix Nunes: Você acredita que o clube tem sido capaz de ajudar tanto autores a divulgarem suas obras quanto livrarias a valorizarem mais autores locais?Kuzman: Sim, tivemos experiências muito boas de aproximação entre o público leitor e os autores e autoras. Pessoas de diferentes gerações se encontraram para compartilhar impressões, trocar vivências e descobrir afinidades inesperadas. Não raro, ouvimos relatos de como o contato direto com o escritor ou a escritora rompe bloqueios com a leitura e desmistifica a posição de quem se dedica à escrita. A parceria com livrarias e espaços culturais da cidade também tem sido muito próspera. Ela se traduz não apenas em vendagens, mas sobretudo no cultivo de um senso de comunidade literária. Como disse uma das autoras participantes, “as pessoas vão juntando limo”: criam afetos, tecem relações e fortalecem vínculos que vão além do livro discutido em cada encontro.